São Paulo, domingo, 30 de maio de 2004

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A BEATITUDE DE ESPINOSA

Marcos André Gleizer
especial para a Folha

A filosofia de Baruch Espinosa (1632-1677) é uma das mais extraordinárias produções do espírito humano. Sua obra principal, a "Ética Demonstrada à Maneira dos Geômetras", ocupa uma posição ímpar na história da filosofia. Sua forma dedutiva constitui a exemplificação mais perfeita do ideal de sistematização do saber, característico da modernidade. Seu conteúdo, encadeado rigorosamente ao longo das cinco partes que a compõem, constrói um espaço teórico inovador que rompe radicalmente com o universo conceitual da tradição metafísico-moral judaico-cristã. Partindo do conhecimento de Deus e de sua relação imanente com a natureza, a "Ética" pretende "conduzir-nos, como que pela mão, ao conhecimento da alma humana e de sua beatitude suprema".
Trata-se, ao longo desse percurso, de conquistar o conhecimento verdadeiro de nós mesmos como partes da natureza, como expressões certas e determinadas do absoluto, conhecimento do qual nascem os afetos ativos que constituem o núcleo da experiência da beatitude, a saber: o contentamento íntimo e o amor intelectual de Deus. Espinosa reconhece que o caminho proposto é extremamente árduo, pois a ele se refere ao término da "Ética" com a célebre afirmação: "Todas as coisas notáveis são tão difíceis como raras".
Essa dificuldade não deve espantar o leitor. Afinal, o objetivo proposto vale o esforço. Além disso, há livros que pretendem auxiliar o iniciante a dar os primeiros passos nesse árduo caminho. Auxílios são evidentemente bem-vindos, com a condição de que ofereçam um mapa confiável do caminho a ser trilhado, isto é, um retrato fiel do pensamento de Espinosa. O que se espera de uma breve introdução ao pensamento de um autor?
Que seja escrita em linguagem clara e acessível, que apresente de forma sintética as principais questões e teses por ele defendidas, que evite juízos sumários, precipitados e preconceituosos a respeito da validade das teses apresentadas (afinal, elas estão sendo apresentadas sem os argumentos que as sustentam) de modo a despertar o interesse do leitor em aprofundar os primeiros conhecimentos recém-adquiridos. Tomando esses elementos como requisitos mínimos de uma boa introdução, examinemos rapidamente três livros que se encontram em circulação atualmente.
O livro de Paul Strathern dificilmente pode ser considerado uma introdução a Espinosa. Com efeito, o retrato pintado de sua vida e obra contém uma tal quantidade de informações histórica e filosoficamente incorretas que é preciso considerá-lo antes como uma caricatura (em perfeita conformidade, aliás, com a caricatura de Espinosa que serve de frontispício ao livro) do que como um autêntico retrato.
Apesar de alguns lugares-comuns laudatórios ("Espinosa é o filósofo dos filósofos"), o tom adotado pelo livro prefere ridicularizar o pensamento de Espinosa a compreendê-lo e, sem deter-se na exposição deste pensamento, se apressa em tentar "refutá-lo" a partir de vagas opiniões acerca da ciência contemporânea e de preconceitos filosóficos apresentados de forma simplória como verdades evidentes. Passemos, portanto, a algo mais interessante.
O livro de Roger Scruton leva-nos a um outro patamar. Trata-se de um livro escrito com bastante clareza (apesar de alguns problemas de tradução) e de âmbito bem delimitado. Após uma brevíssima introdução histórica (pouco informativa e pouco precisa), o autor se concentra na apresentação das principais questões que norteiam a construção da "Ética" e das principais teses propostas como respostas. Essa concentração permite apresentar um retrato mais amplo e detalhado do projeto global da "Ética" do que o oferecido pelas duas outras introduções aqui comentadas. Além disso, Scruton não se contenta simplesmente em apresentar as teses, mas procura oferecer também um esboço de interpretação. Embora as interpretações sugeridas suscitem vários problemas (aos olhos do especialista), elas não deixam de ser estimulantes e de lançar com proveito o leitor na dinâmica reflexiva própria da filosofia.
Por fim, o livro de André Scala oferece a mais substancial e abrangente das três introduções, sendo útil não apenas ao leigo, mas também aos que já possuem algum conhecimento da obra de Espinosa. Partindo de uma breve reflexão acerca das diversas relações entre o filósofo e o não-filósofo, ele organiza os quatro capítulos de seu livro em torno dessas relações, mostrando engenhosamente como cada uma delas está envolvida em uma das principais obras de Espinosa. Assim, o primeiro capítulo oferece uma análise interessante do preâmbulo do "Tratado da Emenda do Intelecto", no qual o jovem Espinosa (ainda não-filósofo) descreve o movimento existencial e reflexivo que o conduz à filosofia. O segundo capítulo aborda alguns aspectos da complexa relação entre Espinosa e Descartes, suscitados pela exposição dos "Princípios da Filosofia de Descartes", que Espinosa -já então filósofo maduro- ditou a um jovem estudante que desejava se introduzir à filosofia. O terceiro, ao apresentar o "Tratado Teológico-Político", examina a relação combativa do filósofo com os não-filósofos (teólogos, políticos) que encarnam os obstáculos ao exercício da filosofia, isto é, à liberdade de pensamento. O último capítulo, dedicado à "Ética", mostra que uma certa relação de composição entre o filósofo e os não-filósofos é condição para que ele possa formar as idéias adequadas que o conduzem da perspectiva da parte à perspectiva do todo. Infelizmente, em vez de expor com clareza as grandes linhas dessa perspectiva, isto é, da ontologia de Espinosa, o autor se debruça aí sobre considerações técnicas acerca do método, das tentativas de formalização empreendidas por Espinosa, das dificuldades da prova da existência da substância etc., levantando problemas que, ultrapassando em muito o nível da mera introdução, confundem desnecessariamente, com esse tropeço expositivo, o iniciante que ensaia seus primeiros passos em direção à beatitude espinosista.


Marcos André Gleizer é professor de filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e autor de "Verdade e Certeza em Espinosa" (L&PM).

OS LIVROS:
Espinosa em 90 Minutos (coleção "Filósofos em 90 Minutos"), de Paul Strathern. Trad. Marcus Penchel. Jorge Zahar.68 págs., R$ 14,00
Espinosa (coleção "Grandes Filósofos"), de Roger Scruton. Trad. Angélika Elisabeth Könke. Editora Unesp. 56 págs., R$ 10,00
Espinosa (coleção "Figuras do Saber"), de André Scala. Trad. Tessa Moura Lacerda. Editora Estação Liberdade. 136 págs., R$ 22,00


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