São Paulo, domingo, 30 de maio de 2004

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JUÍZOS PLATÔNICOS

Daniel Rossi Nunes Lopes
especial para a Folha

Escrever uma breve introdução à filosofia de Platão não é uma tarefa fácil. Platão escreveu em forma de diálogo, e compreender de que modo um diálogo se relaciona com outro não é uma coisa tão simples. É consenso hoje entre os estudiosos de Platão dividir sua obra em três fases, pois muitas teses defendidas por ele num primeiro momento são revistas e reformuladas posteriormente. A dificuldade maior seria, então, apresentar como um todo coeso aquilo que nos aparece fragmentário. Por isso, o autor de uma breve introdução a Platão deve ter a competência para selecionar os tópicos principais de sua filosofia e apresentá-los de maneira clara e coerente.
Bernard Williams ("Platão") se mostra consciente desse desafio: "Os diálogos nunca são fechados ou conclusivos. Eles não oferecem ao leitor os últimos resultados da grande investigação de Platão. Eles contêm histórias, descrições, brincadeiras, argumentos, discursos, seqüências de livre invenção intelectual, retóricas poderosas e às vezes violentas e muitas outras coisas". Diante dessa dificuldade inicial, o autor consegue apresentar de forma concisa ao leitor alguns dos principais temas e problemas filosóficos do pensamento de Platão, como a teoria das formas, a imortalidade da alma, o valor da justiça e da virtude, a idéia do bem e a influência de Sócrates sobre Platão.
Williams tem o cuidado de analisá-los de forma rigorosa, citando inclusive longos trechos dos diálogos ("Fedro", "República", "Mênon", "Górgias", "Protágoras", "Banquete") para melhor fundamentar sua argumentação. Ele não esconde do leitor a dificuldade de sistematizar informações que estão, por sua vez, dispersas nos diálogos. A análise de Williams segue a ordem de divisão dos diálogos em três grupos (os diálogos "socráticos", os intermediários e os de maturidade), pois compreender o desenvolvimento das idéias de Platão é imprescindível para uma apreensão correta de sua filosofia. Nesse ponto, o texto orienta adequadamente o leitor iniciante.
R.M. Hare também faz referência, no "Prefácio" de seu livro ("Platão"), à dificuldade de escrever uma introdução à filosofia de Platão: "É seguro dizer que não se pode fazer nenhuma afirmação interpretativa sobre Platão que algum erudito não venha disputar. Tentei destacar o que julgo serem os principais pontos de seu empreendimento de uma maneira compreensível; mas os limites de um livro de iniciação não me permitem defender minhas concepções além de fornecer umas poucas referências aos textos". Diferentemente de Williams, R.M. Hare cita poucas passagens dos diálogos. Ele faz uma apreciação crítica do pensamento platônico, buscando atualizar os debates filosóficos que encontramos nos diálogos e apontar os seus limites e alcances. Nesse sentido, ele é menos analítico que Williams ao apresentar as teses platônicas, e o próprio texto de Platão fica, às vezes, em segundo plano. Mas a contextualização histórica dos diálogos (cap.1), a relação de Platão com seus predecessores (cap. 2), as motivações de Platão (cap. 3), além da seleção apropriada dos temas, fazem do livro de R.M. Hare um boa referência para o leitor iniciante.
O livro de Paul Strathern ("Platão em 90 Minutos"), no entanto, não cumpre minimamente a tarefa de introduzir o leitor na filosofia de Platão. Pelo contrário, o que se vê antes é uma coleção de juízos de valor anacrônicos que, em vez de instruir o leitor, cria nele preconceitos desprovidos de fundamento filosófico. Misturando, sem critério, dados biográficos (dos quais muitos nem sabemos se são verazes) com alguns tópicos do pensamento de Platão, ele faz o leitor se perder em meio a informações desconexas. Eu poderia enumerar uma série de passagens para ilustrar esses pontos, mas talvez esta, em especial, já deixe clara a compreensão equivocada do autor quanto à importância da obra de Platão: referindo-se à "República", um dos maiores livros da história da literatura e da filosofia ocidental, lido e relido há quase 24 séculos, Strathern afirma que, "olhando em retrospectiva, é fácil detectar falhas nessa apaixonada fantasia infantil" (pág. 30).
O autor prefere associar, de forma absolutamente anacrônica, Platão a Hitler e a Stálin (influenciado, talvez, pela interpretação de Karl R. Popper em "A Sociedade Aberta e Seus Inimigos") a oferecer ao leitor a possibilidade de uma inserção séria nos principais temas da filosofia platônica. Enfim, Strathern consegue antes causar a repulsa a Platão do que estimular o estudo da obra desse grande filósofo grego.


Daniel Rossi Nunes Lopes é professor de literatura grega na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e autor da tradução comentada de "Xenófanes de Cólofon - Fragmentos" (Olavobras).

OS LIVROS
Platão (coleção "Mestres do Pensar"), de R.M. Hare. Trad. Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. Editora Loyola. 120 págs., R$ 8,90
Platão (coleção "Grandes Filósofos"), de Bernard Williams. Trad. Irley Fernandes Franco. Ed. Unesp. 72 págs., R$ 10,00
Platão em 90 Minutos (coleção "Filósofos em 90 Minutos"), de Paul Strathern. Trad. Maria Helena Geordane. Jorge Zahar. 69 págs., R$ 14,00


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