São Paulo, domingo, 30 de maio de 2004

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Ponto de fuga

O anjo violento

Jorge Coli
especial para a Folha

Os americanos já estão vendo "Kill Bill 2", que foi apresentado agora no Festival de Cannes, "hors-concours". O filme deve chegar ao Brasil no mês de outubro. Aqui, está ainda em cartaz a primeira parte, "Kill Bill 1". A frustração é grande quando chega ao fim e anuncia a interrupção. Não por causa da astúcia própria aos seriados, do gênero "conseguirão nossos heróis escapar?", mas porque o prazer é intenso e fica ali sem continuidade.
Nenhum filme de Tarantino atingiu, até agora, um grau tão alto de leveza divertida. "Cães de Aluguel" é agônico e doloroso, repleto de angústia culpada. De "Jackie Brown" emana a melancolia do envelhecimento em modo sussurrado e lírico. O humor cínico de "Pulp Fiction" explora a gratuidade da violência, a banalização da morte e se carrega de mal-estar trazido pelo aniquilamento de qualquer valor ético. "Kill Bill" investe tanto na hipérbole absurda, nos exageros irônicos que os massacres perdem algo de seu horror em benefício do espanto e do maravilhamento.
Tarantino, do western espaguete ao kung fu, ressuscita gêneros do passado que desde sempre lhe foram caros. Conclama ainda paixões mais recentes pelos filmes e pela cultura pop japoneses. São referências que não se mostram apenas como homenagens. Absorvidas, ressurgem com nova energia. Inserem-se num júbilo coreográfico. A exultação eufórica de "Kill Bill", tão forte, não tem equivalente no cinema contemporâneo: para encontrá-lo, é preciso voltar ao tempo das comédias musicais, a "Cantando na Chuva", a "Sete Noivas para Sete Irmãos".

Almas - Tarantino faz com que a violência, em "Kill Bill", vire uma espécie de imenso brinquedo: "Uma orgia cinematográfica, um dilúvio de furor visual: um filme do qual se sai coberto de sangue com um imenso sorriso", escreveu o crítico francês Matthieu Perrin. No entanto, sem obscurecer a intensidade luminosa dessa alegria, Uma Thurman, loiro gênio exterminador, é também portadora de sentimentos humanos. Por ela, infiltra-se uma fatalidade dolorosa, uma determinação obsessiva, um tropismo infeliz.
Tarantino tem um formidável poder sobre seus atores. Sabe como e quando fazer com que brilhem, com que despontem ódios acerados ou irradiem presença eletrizada. Os personagens não perdem nunca a substância corpórea nem a personalidade individual que lhes é própria. Isso atinge mesmo os mais inverossímeis combates: basta pensar no esvaziamento que caracteriza os personagens de "Matrix" e suas lutas, concebidas como balés abstratos e frios, para perceber quanto as guerreiras e os guerreiros de Tarantino possuem de carne, osso, sangue e alma.
São essas qualidades que conduzem o silêncio e o fascínio introspectivo do duelo entre as duas mulheres, sutil, hipnótico, incorporado no cenário de neve tão pictural. A consistência dos personagens vai de par com o modo justo de desenrolar a trama, de dosar os acontecimentos, de concluir episódios ou sugerir segredos que ficam em aberto.

Amazonas - "Kill Bill", pelo menos o número um, é um filme de mulheres, em que não há lugar para o perdão. Elas lutam tão bem quanto os homens ou melhor que eles. São, porém, intrinsecamente vulneráveis. A mulher que dorme traz um convite à concupiscência do olhar, como atesta esse tema clássico nas artes do Ocidente. Mas, se ela submerge no estado de coma, ou seja, num sono sem despertar, é exposta não apenas à observação, mas ao ato concupiscente. Que pode ser amoroso, como contou Almodóvar em "Fale com Ela", mas que pode ser sórdido e covarde, como aparece em "Kill Bill".

Outrora - "Bang bang, he shot me down", canta Nancy Sinatra no filme de Tarantino. A canção fala de lembranças da infância. Ecoa mais longe, porém, sugerindo uma guerra entre homens e mulheres adultos. "Kill Bill" tem duas camadas. Uma, de prazer meio infantil diante dos massacres esplêndidos, que não são, de fato, "para valer" e possuem algo da brutal violência sem conseqüências, própria aos desenhos animados. Outra, de subterrânea melancolia nas relações humanas, feitas de conflitos que não descansam.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br.


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