São Paulo, domingo, 30 de maio de 2004

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Hegemonia norte-americana é discutida em ensaios do cineasta Michael Moore, do sociólogo Immanuel Wallerstein e do lingüista Noam Chomsky

O império balança, mas não cai

Gilberto Felisberto Vasconcellos
especial para a Folha

Três livros abordando o mesmo assunto -a atual e irrefreada beligerância de Washington- escritos por autores norte-americanos com diferentes perfis ideológicos e estilísticos, mas visceralmente anti-George Bush e seus aloprados e reacionários falcões. Os EUA são um país sobre o qual o mundo inteiro está compelido a tematizar e decifrar. Afinal que esfinge é essa? Michael Moore coloca em foco o petróleo na relação EUA-Arábia Saudita e os laços de amizade entre a família Bush e Bin Laden. O chato é quando o autor se mete a nos dar conselhos, a nós, brasileiros: "Parem de gastar dinheiro com o Exército". Ele quer um Brasil desarmado, mas a quem interessa um país com farturão de terra, de sol e de água desguarnecido de Forças Armadas? Segundo Moore, tudo o que aconteceu de bélico lá com os EUA, antes e depois do 11 de Setembro, está vinculado ao petróleo. De seus compatriotas, 80% não sabem apontar no mapa onde fica o Iraque. A verdade é que os Estados Unidos param em pouco tempo sem as últimas reservas petrolíferas do Oriente Médio, enquanto por aqui os badamecos no poder acreditam que esse combustível fóssil é eterno e infinito. Toda a agricultura dos Estados Unidos está baseada no petróleo. E, diz o autor, não me venham com essa conversa mistificadora de que o hidrogênio é fonte de energia. E mais: a fissão nuclear é coisa de maluco. Essa alternativa não substitui o petróleo. A geopolítica da energia, e o que nela existe de capacidade de matar, irá se transladar dos desertos do Oriente Médio para as florestas úmidas dos trópicos. Os brasileiros que se cuidem. Nossa maldita "dívida externa", ao contrário do que pontificam os economistas perfunctórios, não é apenas dispositivo monetário, mas sim instrumento de conquista territorial. Discípulo de Paul Lazarsfeld, o sociólogo Immanuel Wallerstein desmonta a ilusão de que os norte-americanos são amados pelo mundo afora. Essa ilusão implodiu em 11 de setembro, marco do declínio dos Estados Unidos, e que não teve nada a ver com o Iraque, assim como é mentira a existência das armas letais de posse de Saddam Hussein. "As pessoas responsáveis pelo ataque não representavam uma potência militar. Eram membros de uma força não-estatal." Para a megalomania do império era inconcebível um ataque ao território norte-americano. Até então as invectivas contra os EUA eram puramente verbais, por conseguinte os norte-americanos poderiam dar-se ao luxo de ignorá-las; todavia, a partir de 11 de setembro de 2001, eles são obrigados a se perguntar: por que nós somos tão odiados?

Semântica do imperialismo
Autodefinindo-se intelectual de esquerda, mas não marxista, Wallerstein não pode ser tachado de antiamericanismo paranóico e conspiratório, pois está longe de acreditar que os EUA sejam a causa das misérias e injustiças do mundo. "Os Estados confiam em si próprios, mas não confiam em mais ninguém." Supremacia militar não basta para assegurar o domínio do poder mundial. É preciso legitimidade. Bush e os seus belicosos falcões (aliás, quase todos civis) estão convertendo os EUA, aos olhos do mundo inteiro, numa nação de satã, aterrorizadora, capaz de provocar uma catástrofe de proporções inimagináveis.


O chato é quando Moore se mete a dar conselhos aos brasileiros: "Parem de gastar dinheiro com o Exército"


O que apavora Wallerstein é a semântica da palavra "imperialismo", a qual até então significava algo eticamente pejorativo e politicamente deslegitimador. Mas eis que agora Bush e seus falcões começam a dar conotação positiva ao termo "imperialismo". A potência imperialista do dólar é assumida sem o menor constrangimento, e isso é um sintoma alarmante de violência e degradação. "A verdadeira questão não é se a hegemonia dos EUA está em declínio, mas sim se os Estados Unidos conseguirão encontrar uma fórmula de cair graciosamente com danos mínimos para o mundo e para si próprios." O curioso é ele ter se lembrado da coincidência: foi também num dia 11 de setembro que a CIA metralhou Salvador Allende no palácio, no Chile, em 1973. De Noam Chomsky, tido como intelectual antiamericano pelas corriolas de Reagan e Bush, vem a advertência barra-pesadíssima de que os Estados Unidos e nós todos, a humanidade inteira, estamos diante do seguinte dilema: ou a hegemonia imperialista do "fundamentalismo mercadológico" é erradicada, sabe-se lá por que meios, ou senão a sobrevivência da espécie humana estará biologicamente comprometida.

Pulsão antinatureza
Isso nos remete a outro dilema que foi colocado por pensadores humanistas, o dilema entre o socialismo ou a barbárie. Mas Chomsky não se apresenta como um intelectual marxista interessado na substituição do modo de produção capitalista por um socialista. O traço que o define é o seu antiimperialismo, aliás esse antiimperialismo norte-americano é bastante radical e verdadeiro, singularizando-o no meio do pessoal de esquerda, inclusive marxista. Chomsky sente vergonha e indignação diante de um país imperialista, cometendo atrocidades terríveis.
Ele fornece como exemplo eloqüente o ecológico Protocolo de Kyoto [acordo internacional que pretende regular as emissões de gases que provocam o efeito estufa] e a "possibilidade de sobrevivência decente para nossos netos". O presidente Bush, em sua pulsão antinatureza, foi contra reduzir a poluição do carvão mineral sob o argumento de que as medidas preconizadas no protocolo prejudicariam a economia norte-americana.
A cúpula da elite dirigente norte-americana está empenhada em manter a hegemonia. Ela atribui valor zero (calculado em dólar e voto) às gerações futuras. Essa ideologia dos ricos em minoria corresponde à política externa agressiva da potência vilã, cujo imperialismo projetado pelas grandes empresas é adversário do amor e da paz.
Esse quadro sombrio e realista pintado por Noam Chomsky aponta no entanto para uma luz no fundo do túnel: a opinião pública. E, nesse aspecto, ele não quer exercitar o estilo sutil da ironia quando afirma que a "segunda potência" hoje é a opinião pública. Essa "segunda potência", que não se identifica a um país, como foi o caso da extinta União Soviética, forçará a escolha a favor da sobrevivência, não obstante o controle midiático do poder imperialista, ou seja, a conexão mídia e Casa Branca.
Chomsky não tem receio algum de ser romântico: a única maneira de romper o monopólio da violência exercido pelo imperialismo norte-americano -e o seu "sócio júnior, a Grã-Bretanha"- é por meio da opinião pública, dos movimentos populares, dos protestos, da cultura dos direitos humanos e do sentimento de solidariedade. Fora daí não há outra saída para evitar a catástrofe, segundo o renomado lingüista, que deve estar com a pulga atrás da orelha aguardando os resultados das urnas presidenciais neste ano de 2004 nos EUA.

Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de, entre outros livros, "A Salvação da Lavoura" (ed. Casa Amarela).

Cara, Cadê o Meu País?
276 págs., R$ 34,00 de Michael Moore. Vários tradutores. Ed. W11 (r. Ernesto Nazaré, 31, CEP 05462-000, São Paulo, SP, tel. 0/xx/11/3812-3812).
O Declínio do Poder Americano
316 págs., R$ 40,00 de Immanuel Wallerstein. Trad. Elsa T.S. Vieira. Ed. Contraponto (r. Franklin Roosevelt, 23, sala 1.405, CEP 20021-120, RJ, tel. 0/xx/21/ 2544-0206).
O Império Americano
288 págs., R$ 49,00 de Noam Chomsky. Trad. Regina Lyra. Ed. Campus (r. Elvira Ferraz, 198, CEP 04552-040, São Paulo, SP, tel. 0800-265340).



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