São Paulo, Domingo, 30 de Maio de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

AUTORES
A metáfora da limpeza está presente nas culturas de todo o mundo, em todos os tempos
A contaminação da pureza

PETER BURKE
especial para a Folha

Uma das mais importantes consequências da chamada "virada linguística" nas ciências sociais tem sido a descoberta da importância da metáfora, como parte de um estudo mais amplo do simbolismo ao nível do dia-a-dia. A linguagem cotidiana é repleta ou até saturada de metáforas (ponto exemplificado por esta própria sentença). Grupos ou indivíduos desempenham ou representam metáforas, normalmente sem se dar conta do que fazem.
Um exemplo patológico é o de lady Macbeth, de Shakespeare, lavando as mãos para limpar-se da culpa pelo assassinato do rei Duncan. O ritual do batismo é uma representação da purificação, como o são as abluções feitas pelos muçulmanos cinco vezes por dia. O castigo é uma forma de purificação, conforme indica a própria palavra (derivada de "casta"). A castigação das bruxas européias pelo fogo ou afogamento também era uma tentativa (consciente ou inconsciente) de purificar a comunidade do perigo que representavam. Em muitas culturas o fogo é um símbolo de pureza, assim como é a água.
Um exemplo mais corriqueiro da representação da metáfora da pureza pode ser visto nas ruas da Índia. Na Índia os grupos sociais, ou castas ("jati", em hindi) "superiores", os brâmanes, são considerados "mais puros" do que os inferiores. Os membros das castas superiores são obrigados a lavar-se depois de manter contato social com pessoas das castas inferiores (do mesmo modo, na Rússia do século 17, o czar Alexis se banhava depois de ter contato com ocidentais). Em princípio -e, em alguns lugares, na prática, mesmo hoje-, se a simples sombra de uma pessoa de casta inferior (mais ainda se for da casta dos "intocáveis") encostar na comida de um brâmane, a comida tem que ser jogada fora.
Uma geração atrás a antropóloga britânica Mary Douglas ganhou fama como teórica com um estudo intitulado "Purity and Danger" ("Pureza e Perigo", de 1966), no qual vinculou a preocupação com a pureza com a preocupação com a comunidade e, mais especialmente, com seus limites. Douglas sugeriu que a sujeira é simplesmente matéria que se encontra no lugar errado. Assim, a terra é limpa quando está no jardim, mas vira sujeira quando passa para a cozinha. Comida é limpa na cozinha, mas se torna sujeira no quarto. De modo mais geral, Douglas argumentou que qualquer coisa que não se encaixa nas categorias convencionais ou que ultrapassa as fronteiras invisíveis da comunidade é vista como contaminadora ou poluente. Em suma, todos nós nos preocupamos com a pureza, quer tenhamos consciência disso ou não.
Não há dúvida de que a pureza é uma metáfora presente por toda a parte, quer se trate da pureza de alma, da pureza do sangue (tão importante na Espanha do século 16 ou na Alemanha de Hitler) ou da pureza (castidade) das mulheres. A doutrina da Imaculada Concepção se fundamenta nessa metáfora, e a mesma coisa se dá com a idéia do Purgatório. Alguns dos hereges que rejeitaram essas doutrinas afirmavam ser mais puros do que a Igreja Católica: os "puritanos" ingleses, por exemplo, ou os cátaros, na Languedoc do século 13, cujo nome é derivado da palavra "puro" em grego. Os católicos, por sua vez, falavam da "poluição" ou "contaminação" da Igreja pela heresia.
A cultura secular também é permeada pela metáfora da pureza. Os nobres europeus acreditavam que seu sangue era mais puro do que o dos burgueses, e os comerciantes e artesãos consideravam seu sangue mais puro do que o dos judeus, os intocáveis da Europa. Considere-se também a idéia da purgação. Os médicos recomendavam purgações (que podiam ser sangrias ou eméticos) para purificar o organismo de doenças. O expurgo do Partido Comunista russo sob o governo de Stálin é um exemplo notório de uma medida que já foi tomada por muitas organizações políticas, especialmente da Revolução Francesa em diante. Muitas tentativas já foram feitas de fazer política com "mãos limpas", e até a máfia e outras organizações de narcotráfico praticam a "lavagem" de dinheiro. Filósofos e administradores falam de "razão pura", "matemática pura" e "pesquisa pura". Já houve vários movimentos de "purismo" nas artes, especialmente no século 20.
A linguagem também é vista, frequentemente, como sendo mais ou menos pura. Espero que, neste artigo, eu esteja me expressando com candura, clareza, lucidez e até perspicácia. Todos esses termos são metáforas ligadas a idéias de luz, luminosidade e pureza. Na França, Espanha e outros países, nos séculos 17 e 18, foram fundadas academias para compilar dicionários de língua correta e, desse modo, purificar as linguagens das elites de jargões, dialetos e palavras de origem estrangeira. Alessandro Manzoni, o grande romancista do século 19, nascido em Milão, mudou-se para Florença para falar e escrever uma forma mais pura de italiano, ou, em suas próprias palavras, "para lavar suas roupas no Arno".
A linguagem é um dos principais palcos dos conflitos em torno de pureza, porque ela simboliza a comunidade. Na Grécia do século 19, por exemplo, surgiu um movimento (conhecido como "katharevousa") para purificar o idioma grego de palavras turcas e restaurar seus elementos clássicos. Uma sociedade de puristas liderou um movimento semelhante para purificar o alemão de palavras de origem inglesa e francesa, movimento esse que atingiu seu auge na era de Hitler e da chamada "higiene racial". Há um movimento semelhante na França de hoje, encorajado por sucessivos governos franceses, desde o de Charles de Gaulle. Seu principal alvo é o "franglais" -mais precisamente, a invasão do francês por palavras de origem inglesa e norte-americana, desde "fast-food" até "week-end".
O movimento das palavras pode ser comparado ao movimento de pessoas. A mobilidade social das palavras, assim como a das pessoas, frequentemente é vista pelas elites estabelecidas como fator de perturbação da ordem social. Os puristas se opõem à imigração de palavras estrangeiras da mesma maneira em que se opõem à imigração dos próprios estrangeiros. Os imigrantes frequentemente são vistos como sujos, e Mary Douglas nos ajuda a compreender a razão disso. Os imigrantes são, por definição, pessoas que se encontram fora de seu lugar ou território próprio. Eles atravessam fronteiras, ou seja, transgridem limites. Quando chegam aos lugares de outras pessoas, são vistos como elementos deslocados ou impuros.
A queima de povoados albaneses na Sérvia, como a queima de bruxas, é um exemplo extremo e horrendo de ritual de purificação. Um exemplo mais brando pode ser visto em aeroportos. Quando um vôo internacional aterrissa na Austrália, os passageiros não podem deixar o avião imediatamente. Primeiro, dois funcionários entram no avião armados de latas contendo algum tipo de desinfetante e pulverizam o avião. A ação é justificada como medida de higiene, e a explicação pode ser correta, pelo menos ao nível consciente. Mas, para o visitante estrangeiro, como eu, ela aparenta ser mais um ritual de purificação. Nós somos a sujeira da qual a ilha pura da Austrália precisa se purificar.
Um certo grau de preocupação com a pureza parece ser universal ou normal. Em muitas culturas, porém, alguns indivíduos ou grupos se mostram mais preocupados -para não dizer obcecados- com a pureza do que outros, como lady Macbeth. Os caçadores de bruxas do século 17, por exemplo. Poderíamos qualificar essas pessoas de "puristas". O estudo psicológico dos puristas pode ser altamente esclarecedor. Será que essas pessoas têm menos certeza de sua própria identidade do que outras? Pode isso ser explicado pelos acontecimentos que marcaram sua infância? Mas não podemos nos dar ao luxo de esquecer que a preocupação com a pureza não se restringe a indivíduos patológicos. Os puristas lideram, mas outros os seguem, especialmente nos momentos em que a comunidade parece estar correndo perigo.
"Limpeza étnica" é um slogan novo, mas o tipo de ansiedade que está por trás dele (insegurança quanto à identidade, medo de contaminação) está longe de ser nova e, com toda certeza, não se limita aos Bálcãs, nem mesmo à Europa. A pureza e o perigo estão de fato ligados, mas não da maneira como os puristas imaginam. O verdadeiro perigo não vem de fora. O fato de a metáfora da pureza existir em todo lugar sugere que o perigo vem de dentro de nós mesmos.


Peter Burke é historiador inglês, autor de "A Arte da Conversação" e "As Fortunas d'O Cortesão'" (Unesp). Ele escreve na seção "Autores", da Folha.
Tradução de Clara Allain.




Texto Anterior: Joyce Pascowitch
Próximo Texto: Brasil 500 d.c. - José Murilo de Carvalho: A liberdade dos pós-modernos
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.