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AUTORES
A metáfora da limpeza está presente nas culturas de todo o mundo, em todos os
tempos
A contaminação da pureza
PETER BURKE
especial para a Folha
Uma das mais importantes consequências da chamada "virada
linguística" nas ciências sociais
tem sido a descoberta da importância da metáfora, como parte de
um estudo mais amplo do simbolismo ao nível do dia-a-dia. A linguagem cotidiana é repleta ou até
saturada de metáforas (ponto
exemplificado por esta própria
sentença). Grupos ou indivíduos
desempenham ou representam
metáforas, normalmente sem se
dar conta do que fazem.
Um exemplo patológico é o de
lady Macbeth, de Shakespeare, lavando as mãos para limpar-se da
culpa pelo assassinato do rei Duncan. O ritual do batismo é uma representação da purificação, como
o são as abluções feitas pelos muçulmanos cinco vezes por dia. O
castigo é uma forma de purificação, conforme indica a própria palavra (derivada de "casta"). A castigação das bruxas européias pelo
fogo ou afogamento também era
uma tentativa (consciente ou inconsciente) de purificar a comunidade do perigo que representavam. Em muitas culturas o fogo é
um símbolo de pureza, assim como é a água.
Um exemplo mais corriqueiro
da representação da metáfora da
pureza pode ser visto nas ruas da
Índia. Na Índia os grupos sociais,
ou castas ("jati", em hindi) "superiores", os brâmanes, são considerados "mais puros" do que os
inferiores. Os membros das castas
superiores são obrigados a lavar-se depois de manter contato
social com pessoas das castas inferiores (do mesmo modo, na Rússia do século 17, o czar Alexis se
banhava depois de ter contato
com ocidentais). Em princípio
-e, em alguns lugares, na prática,
mesmo hoje-, se a simples sombra de uma pessoa de casta inferior (mais ainda se for da casta dos
"intocáveis") encostar na comida
de um brâmane, a comida tem que
ser jogada fora.
Uma geração atrás a antropóloga britânica Mary Douglas ganhou
fama como teórica com um estudo
intitulado "Purity and Danger"
("Pureza e Perigo", de 1966), no
qual vinculou a preocupação com
a pureza com a preocupação com
a comunidade e, mais especialmente, com seus limites. Douglas
sugeriu que a sujeira é simplesmente matéria que se encontra no
lugar errado. Assim, a terra é limpa quando está no jardim, mas vira sujeira quando passa para a cozinha. Comida é limpa na cozinha,
mas se torna sujeira no quarto. De
modo mais geral, Douglas argumentou que qualquer coisa que
não se encaixa nas categorias convencionais ou que ultrapassa as
fronteiras invisíveis da comunidade é vista como contaminadora ou
poluente. Em suma, todos nós nos
preocupamos com a pureza, quer
tenhamos consciência disso ou
não.
Não há dúvida de que a pureza é
uma metáfora presente por toda a
parte, quer se trate da pureza de
alma, da pureza do sangue (tão
importante na Espanha do século
16 ou na Alemanha de Hitler) ou
da pureza (castidade) das mulheres. A doutrina da Imaculada Concepção se fundamenta nessa metáfora, e a mesma coisa se dá com a
idéia do Purgatório. Alguns dos
hereges que rejeitaram essas doutrinas afirmavam ser mais puros
do que a Igreja Católica: os "puritanos" ingleses, por exemplo, ou
os cátaros, na Languedoc do século 13, cujo nome é derivado da palavra "puro" em grego. Os católicos, por sua vez, falavam da "poluição" ou "contaminação" da
Igreja pela heresia.
A cultura secular também é permeada pela metáfora da pureza.
Os nobres europeus acreditavam
que seu sangue era mais puro do
que o dos burgueses, e os comerciantes e artesãos consideravam
seu sangue mais puro do que o dos
judeus, os intocáveis da Europa.
Considere-se também a idéia da
purgação. Os médicos recomendavam purgações (que podiam ser
sangrias ou eméticos) para purificar o organismo de doenças. O expurgo do Partido Comunista russo sob o governo de Stálin é um
exemplo notório de uma medida
que já foi tomada por muitas organizações políticas, especialmente
da Revolução Francesa em diante.
Muitas tentativas já foram feitas de
fazer política com "mãos limpas",
e até a máfia e outras organizações
de narcotráfico praticam a "lavagem" de dinheiro. Filósofos e administradores falam de "razão
pura", "matemática pura" e
"pesquisa pura". Já houve vários
movimentos de "purismo" nas
artes, especialmente no século 20.
A linguagem também é vista,
frequentemente, como sendo
mais ou menos pura. Espero que,
neste artigo, eu esteja me expressando com candura, clareza, lucidez e até perspicácia. Todos esses
termos são metáforas ligadas a
idéias de luz, luminosidade e pureza. Na França, Espanha e outros
países, nos séculos 17 e 18, foram
fundadas academias para compilar dicionários de língua correta e,
desse modo, purificar as linguagens das elites de jargões, dialetos
e palavras de origem estrangeira.
Alessandro Manzoni, o grande romancista do século 19, nascido em
Milão, mudou-se para Florença
para falar e escrever uma forma
mais pura de italiano, ou, em suas
próprias palavras, "para lavar
suas roupas no Arno".
A linguagem é um dos principais
palcos dos conflitos em torno de
pureza, porque ela simboliza a comunidade. Na Grécia do século 19,
por exemplo, surgiu um movimento (conhecido como "katharevousa") para purificar o idioma
grego de palavras turcas e restaurar seus elementos clássicos. Uma
sociedade de puristas liderou um
movimento semelhante para purificar o alemão de palavras de origem inglesa e francesa, movimento esse que atingiu seu auge na era
de Hitler e da chamada "higiene
racial". Há um movimento semelhante na França de hoje, encorajado por sucessivos governos franceses, desde o de Charles de Gaulle. Seu principal alvo é o "franglais" -mais precisamente, a invasão do francês por palavras de
origem inglesa e norte-americana,
desde "fast-food" até
"week-end".
O movimento das palavras pode
ser comparado ao movimento de
pessoas. A mobilidade social das
palavras, assim como a das pessoas, frequentemente é vista pelas
elites estabelecidas como fator de
perturbação da ordem social. Os
puristas se opõem à imigração de
palavras estrangeiras da mesma
maneira em que se opõem à imigração dos próprios estrangeiros.
Os imigrantes frequentemente são
vistos como sujos, e Mary Douglas
nos ajuda a compreender a razão
disso. Os imigrantes são, por definição, pessoas que se encontram
fora de seu lugar ou território próprio. Eles atravessam fronteiras,
ou seja, transgridem limites.
Quando chegam aos lugares de
outras pessoas, são vistos como
elementos deslocados ou impuros.
A queima de povoados albaneses
na Sérvia, como a queima de bruxas, é um exemplo extremo e horrendo de ritual de purificação. Um
exemplo mais brando pode ser
visto em aeroportos. Quando um
vôo internacional aterrissa na
Austrália, os passageiros não podem deixar o avião imediatamente. Primeiro, dois funcionários entram no avião armados de latas
contendo algum tipo de desinfetante e pulverizam o avião. A ação
é justificada como medida de higiene, e a explicação pode ser correta, pelo menos ao nível consciente. Mas, para o visitante estrangeiro, como eu, ela aparenta
ser mais um ritual de purificação.
Nós somos a sujeira da qual a ilha
pura da Austrália precisa se purificar.
Um certo grau de preocupação
com a pureza parece ser universal
ou normal. Em muitas culturas,
porém, alguns indivíduos ou grupos se mostram mais preocupados
-para não dizer obcecados-
com a pureza do que outros, como
lady Macbeth. Os caçadores de
bruxas do século 17, por exemplo.
Poderíamos qualificar essas pessoas de "puristas". O estudo psicológico dos puristas pode ser altamente esclarecedor. Será que essas pessoas têm menos certeza de
sua própria identidade do que outras? Pode isso ser explicado pelos
acontecimentos que marcaram
sua infância? Mas não podemos
nos dar ao luxo de esquecer que a
preocupação com a pureza não se
restringe a indivíduos patológicos.
Os puristas lideram, mas outros os
seguem, especialmente nos momentos em que a comunidade parece estar correndo perigo.
"Limpeza étnica" é um slogan
novo, mas o tipo de ansiedade que
está por trás dele (insegurança
quanto à identidade, medo de
contaminação) está longe de ser
nova e, com toda certeza, não se
limita aos Bálcãs, nem mesmo à
Europa. A pureza e o perigo estão
de fato ligados, mas não da maneira como os puristas imaginam. O
verdadeiro perigo não vem de fora. O fato de a metáfora da pureza
existir em todo lugar sugere que o
perigo vem de dentro de nós mesmos.
Peter Burke é historiador inglês, autor de "A
Arte da Conversação" e "As Fortunas d'O Cortesão'" (Unesp). Ele escreve na seção "Autores", da Folha.
Tradução de Clara Allain.
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