São Paulo, Domingo, 30 de Maio de 1999
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Oito questões sobre Kafka

NELSON ASCHER
especial para a Folha

1. Quem influenciou Kafka diretamente?
Além dos precursores que Jorge Luis Borges enumera, enfatizando que cada autor cria os seus próprios, a crítica especializada detém-se cada vez mais sobre a obra do contista e romancista suíço Robert Walser (1878-1956), que, depois de enlouquecer em 1929, passou o resto da vida num hospital para doentes mentais.
2. Há algum contemporâneo que tenha sido seu parente espiritual?
O judeu polonês Bruno Schulz (1893-1942), que publicou duas pequenas coletâneas de contos e foi morto por um soldado nazista.
3. Quem não gostava de Kafka?
De importante, só o crítico americano Edmund Wilson que, num ensaio chamado "Uma Opinião Dissidente sobre Kafka", considera-o "barbaramente supervalorizado" e acrescenta, a respeito de "O Processo" e "O Castelo", que seriam obras "nunca terminadas e realmente nunca trabalhadas de todo"; e diz também, sobre seus temas, que "haviam sido desenvolvidos com tão pouco rigor, que Max Brod, quando resolveu editá-los, não encontrou nada além de uma série indefinida de episódios, que teve de organizar do melhor modo que pôde, embora nem sempre fosse capaz de dizer precisamente em que ordem deveriam ser colocados".
4. Quais os principais admiradores de Kafka?
São incontáveis, mas convém mencionar o crítico alemão Walter Benjamin; o escritor russo exilado Vladimir Nabokov; o pensador búlgaro de expressão alemã Elias Canetti; e o escritor argentino Jorge Luis Borges, que não apenas escreveu um dos melhores ensaios sobre ele, "Kafka e seus Precursores", como também traduziu para o espanhol "A Metamorfose". Como que respondendo a Edmund Wilson, o argentino observou: "A crítica deplora que nos três romances de Kafka faltem muitos capítulos intermediários, mas reconhece que esses capítulos não são imprescindíveis. Eu tenho para mim que essa reclamação indica um desconhecimento essencial da arte de Kafka. O "pathos" destes "inconclusos" romances nasce precisamente do número infinito de obstáculos que detêm e voltam a deter os seus heróis idênticos. Franz Kafka não os terminou porque o primordial era que fossem intermináveis. Lembram-se do primeiro e mais claro dentre os paradoxos de Zenão? O movimento é impossível, pois antes de chegar a C deveremos cruzar o ponto intermediário D, porém antes de chegar a D... O grego não enumera todos os pontos, Franz Kafka não tem por que enumerar todas as vicissitudes. Baste-nos compreender que são infinitas como o inferno".
5. O que achava das mulheres?
Dizia que "elas apenas observam se estão agradando, em seguida, se estão causando pena e, finalmente, se você está em busca da compaixão delas. Isso é tudo; a bem pensar, pode até ser suficiente em termos gerais".
6. Qual o principal lugar-comum a seu respeito?
Sua obra teria antecipado ou profetizado o Holocausto, mas a verdade é que até o ponto em que se pode traçar um paralelo entre seus escritos e uma situação política real, este paralelo tem mais cabimento se for feito com os expurgos e o terror soviéticos.
7. O que é que melhor caracteriza Kafka como um escritor arquetípica e paradigmaticamente centro-europeu?
A dupla letra "K" do seu sobrenome. A monarquia austro-húngara na qual nasceu definia-se como "imperial e real", pois seu soberano detinha, além de muitos outros, os títulos de imperador ("Kaiser") e de rei ("Koenig"). "Imperial e real" em alemão é "Kaiserlich und Koeniglich", e um outro escritor da região, Robert Musil, batizou satiricamente a monarquia de Kakânia. Muitos dos melhores escritores poloneses, tchecos, húngaros e iugoslavos têm o sobrenome começado com a letra "K".
8. Kafka era kafkiano?
Assim como Cristo era cristão, Marx marxista e Freud freudiano.


TRADUÇÕES NO BRASIL
"Um Artista da Fome/A Construção" (R$ 14,50); "Carta ao Pai" (R$ 11,50); "Um Médico Rural" (R$ 14,00); "A Metamorfose" (R$ 12,50); "O Processo" (R$ 19,00); "O Veredicto e Na Colônia Penal" (R$ 13,00).
Todos os livros acima foram traduzidos pelo escritor e ensaísta Modesto Carone e editados pela Companhia das Letras (tel. 011/866-0801).




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