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Ponto de fuga
Jorge Coli
São Paulo e os nus
Scarpellini não se interessava pela natureza; sua paixão eram as paisagens que resultavam das ações humanas, meio ao acaso, selecionadas pelo tempo
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Vincenzo Scarpellini
morreu. Os leitores da
Folha o conheciam das
imagens que acompanharam a
coluna de Gilberto Dimenstein.
Não eram ilustrações, ele dizia,
eram crônicas visuais.
Vincenzo Scarpellini, italiano, veio para o Brasil, apaixonou-se por São Paulo.
Apaixonou-se também por Cláudia,
linda, inteligente, suave, e se
casou. O trio se fez com Sophia,
a filhinha. Morou na av. São
Luís, em prédio do [arquiteto
ucraniano Gregori] Warchavchik, que ele descrevia com orgulho. Antes de o bebê nascer,
dizia: "É melhor mudar do centro. Por causa da criança". Mas
a decisão custava. Foi para um
apartamento no Copan, e depois, para o edifício Eiffel, bem
lá no alto, com vista. Comentava o panorama da praça da República, analisando, como artista, como esteta, cada prédio,
cada intervenção humana.
Publicava na Folha cenas da
cidade sempre animadas por
personagens. Desenhava-as em
pastel, com acuidade, com força construtiva nas formas e nas
cores. Retratava São Paulo
também em óleos. Não se interessava pela natureza. Sua paixão eram as paisagens que resultavam das ações humanas,
meio ao acaso, irregulares, selecionadas pelo tempo.
Visitar o centro da cidade
com ele significava descobrir
tesouros. Aqui, uma fachada
curiosa ou inventiva, ali um saguão mais original ou uma porta elaborada.
Atentava para o mobiliário:
"Vamos comer naquele restaurante; você vai ver: os lambris,
o lustre, o assoalho, até as cadeiras são dos anos 1950. Olhe
a qualidade do material!".
Asas
Há os nus femininos, em telas, em placas de porcelana, em
papel, sobretudo. A linha se impõe, dominada, expressiva.
Scarpellini contratava atrizes
para posar: queria uma naturalidade desenvolta dos movimentos. Sua última exposição,
consagrada aos nus e organizada pelo centro cultural da Caixa, na praça da Sé, mostrou um
artista de formidável capacidade, na mais plena posse dos
meios plásticos.
Dominava a forma, mas não
era um formalista. As mulheres
representadas, as perspectivas
de São Paulo, alguns retratos,
brotavam do olhar respeitoso,
com marca pessoal evidente,
mas sem espírito de sistema.
Suas obras possuem, por assim dizer, uma dupla autoria: a
de quem, na representação, refaz o que vê, e a daquilo que se
deixa ver, mas não perde sua alma. Sem o vampirismo da forma, o observado impõe singularidades e mistérios.
Seus modelos femininos
eram individualizados, no papel, pelos volumes. Obrigava-os
a posições incomuns. A vagina
é o centro ponderável desses
desenhos, centro que se oferece, que se oculta. Dela emana o
equilíbrio vivo da obra. Manchas escuras sugerem sombras
e pelos. Moldam o vazio branco, para lhes conferir carnalidade imaginária, silenciosa.
Scarpellini concebeu vários
projetos gráficos para jornais e
revistas, ilustrou reportagens
do caderno "Turismo" da Folha e tantas outras coisas. É
preciso, é urgente, é imperativo
que alguma instituição organize uma retrospectiva bem
completa de sua obra.
Vôo
Vincenzo Scarpellini possuía
elegância natural e discreta.
Tudo o que amava era em modo
intenso, alegre e substancial.
Conversava com leveza, tinha
prazer em compartilhar o que
lhe interessava. Sempre entusiasmado pela vida, até o final
do câncer, fulminante, que o levou. Era amigo afetuoso, atento, devotado. Partiu muito cedo, absurdamente cedo.
JORGE COLI é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br
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