São Paulo, domingo, 30 de julho de 2006

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Ponto de fuga

Jorge Coli

São Paulo e os nus

Scarpellini não se interessava pela natureza; sua paixão eram as paisagens que resultavam das ações humanas, meio ao acaso, selecionadas pelo tempo

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Vincenzo Scarpellini morreu. Os leitores da Folha o conheciam das imagens que acompanharam a coluna de Gilberto Dimenstein.
Não eram ilustrações, ele dizia, eram crônicas visuais. Vincenzo Scarpellini, italiano, veio para o Brasil, apaixonou-se por São Paulo.
Apaixonou-se também por Cláudia, linda, inteligente, suave, e se casou. O trio se fez com Sophia, a filhinha. Morou na av. São Luís, em prédio do [arquiteto ucraniano Gregori] Warchavchik, que ele descrevia com orgulho. Antes de o bebê nascer, dizia: "É melhor mudar do centro. Por causa da criança". Mas a decisão custava. Foi para um apartamento no Copan, e depois, para o edifício Eiffel, bem lá no alto, com vista. Comentava o panorama da praça da República, analisando, como artista, como esteta, cada prédio, cada intervenção humana.
Publicava na Folha cenas da cidade sempre animadas por personagens. Desenhava-as em pastel, com acuidade, com força construtiva nas formas e nas cores. Retratava São Paulo também em óleos. Não se interessava pela natureza. Sua paixão eram as paisagens que resultavam das ações humanas, meio ao acaso, irregulares, selecionadas pelo tempo.
Visitar o centro da cidade com ele significava descobrir tesouros. Aqui, uma fachada curiosa ou inventiva, ali um saguão mais original ou uma porta elaborada. Atentava para o mobiliário: "Vamos comer naquele restaurante; você vai ver: os lambris, o lustre, o assoalho, até as cadeiras são dos anos 1950. Olhe a qualidade do material!".

Asas
Há os nus femininos, em telas, em placas de porcelana, em papel, sobretudo. A linha se impõe, dominada, expressiva. Scarpellini contratava atrizes para posar: queria uma naturalidade desenvolta dos movimentos. Sua última exposição, consagrada aos nus e organizada pelo centro cultural da Caixa, na praça da Sé, mostrou um artista de formidável capacidade, na mais plena posse dos meios plásticos.
Dominava a forma, mas não era um formalista. As mulheres representadas, as perspectivas de São Paulo, alguns retratos, brotavam do olhar respeitoso, com marca pessoal evidente, mas sem espírito de sistema.
Suas obras possuem, por assim dizer, uma dupla autoria: a de quem, na representação, refaz o que vê, e a daquilo que se deixa ver, mas não perde sua alma. Sem o vampirismo da forma, o observado impõe singularidades e mistérios.
Seus modelos femininos eram individualizados, no papel, pelos volumes. Obrigava-os a posições incomuns. A vagina é o centro ponderável desses desenhos, centro que se oferece, que se oculta. Dela emana o equilíbrio vivo da obra. Manchas escuras sugerem sombras e pelos. Moldam o vazio branco, para lhes conferir carnalidade imaginária, silenciosa.
Scarpellini concebeu vários projetos gráficos para jornais e revistas, ilustrou reportagens do caderno "Turismo" da Folha e tantas outras coisas. É preciso, é urgente, é imperativo que alguma instituição organize uma retrospectiva bem completa de sua obra.

Vôo
Vincenzo Scarpellini possuía elegância natural e discreta. Tudo o que amava era em modo intenso, alegre e substancial.
Conversava com leveza, tinha prazer em compartilhar o que lhe interessava. Sempre entusiasmado pela vida, até o final do câncer, fulminante, que o levou. Era amigo afetuoso, atento, devotado. Partiu muito cedo, absurdamente cedo.


JORGE COLI é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br


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