São Paulo, domingo, 30 de julho de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Juízos em preto-e-branco

Para o filósofo Roberto Romano, efeitos positivo e negativo da superproteção ao menor desnorteiam sociedade brasileira

ROBERTO ROMANO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O escândalo atual vem de uma novela assistida por milhões na TV. A opinião pública enfrenta, ao mesmo tempo, o caso do adolescente que é acusado de matar um casal com frieza, após cometer seqüestro seguido de estupro.
O jovem, porque não atingiu a maioridade, pode escapar ileso dentro de pouco tempo. Como em todo evento que choca a sensibilidade coletiva, as reações previsíveis são paradoxais.
Li comentários sobre a cena da televisão e, neles, o enredo seria responsável pela maré corrupta que assalta a vida nacional. Exagero. Analisei artigos sobre o assassinato referido acima, eivados de ódio e preconceito. Deles é possível deduzir que a moça violentada e assassinada teria a maior parcela de culpa. Fascismo é pouco para definir esta última forma de escrever.
No caso da novela, o moralismo oculta algo freqüente em outros programas ditos "de entretenimento". Foi esquecida a dança que um famoso apresentador exibia em seu programa dominical? Para avivar a memória: uma garrafa era posta no chão e sobre ela moviam-se, com movimentos lascivos, crianças de sete anos, pobres e de sexo feminino.
E tudo sob os olhares enternecidos dos pais e dos espectadores, aos milhões. O Ministério Público precisou mover todos os seus recursos para que o número fosse retirado do ar.

Origem do escândalo
Quando se debate a comoção pública, é preciso em primeiro plano saber o que é o fato escandaloso. O termo vem do grego "skandalon" e significa um obstáculo que ao mesmo tempo atrai e afasta as pessoas. Nele, unem-se a curiosidade perversa e o medo de perder as máscaras da normalidade.
A violência rotinizada impera, sem contestações significativas. De repente, surge o monstruoso, antes disfarçado no comportamento habitual. O escândalo é a hipocrisia que perdeu a virgindade mentirosa e ocorre quando não é mais possível fingir que o péssimo impera como norma respeitável. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) trouxe alguma segurança para muitos jovens pobres, formados em famílias violentas e violentadas. Cito o caso exemplar.
No Recife, um menino pegava mangas nas imediações de sua casa. As árvores eram próximas a uma oficina de galvanização. Ouvindo barulhos estranhos, o vigia do local dispara alguns tiros. Policiais militares perseguem o garoto e o levam para a oficina. Jogam-no num tonel com hidróxido de sódio (soda cáustica), provocando-lhe queimaduras de segundo e de terceiro graus. Não satisfeitos, aplicam-lhe tapas e pontapés nas costas. O tenente chegou a subir em suas costas. Passado bom tempo, um integrante da patrulha o conduz ao posto policial, exigindo que ele afirmasse ter caído acidentalmente no tonel.
Segundo outro funcionário da lei envolvido, a pele do adolescente ficou enrugada "como se fosse papel amassado".
A defesa dos policiais alegou que o menino tinha "credibilidade zero", pois era "adolescente e imaturo". Um juiz íntegro condenou os policiais. O menino, no entanto, quem lhe devolverá a pele e a confiança na humanidade? [processo nš 001977043580-1, julgado pelo Juiz Nivaldo Mulatinho Filho. Cf. "Revista da Escola Superior da Magistratura de Pernambuco"]
Mas, de outro lado, como reparar o sofrimento da jovem violentada e morta, com extrema crueldade? E quem trará aos seus pais a confiança na humanidade? Um adolescente, porque pobre, tem o direito de agir como fera e manter-se impune? Nenhum elo dessa cadeia trágica pode ser esquecido, se o juízo pretende ser honesto.

Lógica de holofotes
Mas nas crises brota a desonestidade doutrinária. A ética exige prudência, a qual impõe medidas. Quando um caso atingiu o plano do escândalo, os habituais donos da verdade ultrapassam os limites conceituais e factuais, tendo em vista tudo "explicar".
Na pedagogia da escola e aprendizado social, vale no entanto a advertência de um especialista em análise de opinião pública: "Pedir em demasia desencoraja. Mas não solicitar muito infantiliza. Saibamos, em conseqüência, graduar, dosar, decompor e assim favorecer o nosso aprendizado" [François, "Pourquoi Nous Persistons à Valoriser la Mesure?", Por Que Persistimos em Valorizar a Medida, em "La Mesure, Instruments et Philosophie", A Medida, Instrumentos e Filosofia. Jean-Claude Beaune (ed.)].
Nos casos da TV e do adolescente assassino, é forte o desejo de oferecer juízos em preto-e-branco. Há um prudente conselho do alemão Erich Auerbach, notável hermeneuta da vida ocidental e da literatura, que previne contra a técnica do holofote, a qual consiste em "iluminar excessivamente uma pequena parte de um grande e complexo contexto, deixando na escuridão todo o restante que puder explicar parte. De tal forma se diz aparentemente a verdade, pois que o dito é indiscutível, mas tudo não deixa de ser falsificado, pois que da verdade faz parte toda a verdade, assim como a correta ligação das suas partes".
Assim, "o público sempre volta a cair nesses truques, sobretudo em tempos de inquietação. O truque é fácil de ser descoberto. Mas falta ao povo ou ao público, em tempos de tensão, a vontade séria de fazê-lo" ["A Ceia Interrompida", in "Mimesis", ed. Perspectiva].
Quantos holofotes, no Brasil, asseguram apenas interesses políticos, doutrinários, religiosos! Os fariseus, com suas ideologias de granito, possuem eternidades para reafirmar clichês e cobrir os adversários de vitupérios. Falta o tempo para a prudente pesquisa das causas que geram os escândalos. Restam a violência e o desalento. Isso é Brasil.


ROBERTO ROMANO é professor titular de ética e filosofia política na Universidade Estadual de Campinas e autor de "Moral e Ciência - A Monstruosidade no Século 18" (ed. Senac/SP).

Texto Anterior: Amnésia metropolitana
Próximo Texto: Jovem apontado como mentor de crime pode ser solto em 2007
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.