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Juízos em preto-e-branco
Para o filósofo Roberto Romano, efeitos positivo e negativo
da superproteção ao menor desnorteiam sociedade brasileira
ROBERTO ROMANO
ESPECIAL PARA A FOLHA
O escândalo atual
vem de uma novela assistida por milhões na TV. A opinião pública enfrenta, ao mesmo tempo, o caso
do adolescente que é acusado
de matar um casal com frieza,
após cometer seqüestro seguido de estupro.
O jovem, porque não atingiu
a maioridade, pode escapar ileso dentro de pouco tempo. Como em todo evento que choca a
sensibilidade coletiva, as reações previsíveis são paradoxais.
Li comentários sobre a cena
da televisão e, neles, o enredo
seria responsável pela maré
corrupta que assalta a vida nacional. Exagero. Analisei artigos sobre o assassinato referido acima, eivados de ódio e preconceito. Deles é possível deduzir que a moça violentada e
assassinada teria a maior parcela de culpa. Fascismo é pouco para definir esta última forma de escrever.
No caso da novela, o moralismo oculta algo freqüente em
outros programas ditos "de entretenimento". Foi esquecida a
dança que um famoso apresentador exibia em seu programa
dominical? Para avivar a memória: uma garrafa era posta
no chão e sobre ela moviam-se,
com movimentos lascivos,
crianças de sete anos, pobres e
de sexo feminino.
E tudo sob os olhares enternecidos dos pais e dos espectadores, aos milhões. O Ministério Público precisou mover todos os seus recursos para que o
número fosse retirado do ar.
Origem do escândalo
Quando se debate a comoção
pública, é preciso em primeiro
plano saber o que é o fato escandaloso. O termo vem do grego "skandalon" e significa um
obstáculo que ao mesmo tempo
atrai e afasta as pessoas. Nele,
unem-se a curiosidade perversa e o medo de perder as máscaras da normalidade.
A violência rotinizada impera, sem contestações significativas. De repente, surge o
monstruoso, antes disfarçado
no comportamento habitual. O
escândalo é a hipocrisia que
perdeu a virgindade mentirosa
e ocorre quando não é mais
possível fingir que o péssimo
impera como norma respeitável. O Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) trouxe alguma segurança para muitos
jovens pobres, formados em famílias violentas e violentadas.
Cito o caso exemplar.
No Recife, um menino pegava mangas nas imediações de
sua casa. As árvores eram próximas a uma oficina de galvanização. Ouvindo barulhos estranhos, o vigia do local dispara alguns tiros. Policiais militares
perseguem o garoto e o levam
para a oficina. Jogam-no num
tonel com hidróxido de sódio
(soda cáustica), provocando-lhe queimaduras de segundo e
de terceiro graus. Não satisfeitos, aplicam-lhe tapas e pontapés nas costas. O tenente chegou a subir em suas costas.
Passado bom tempo, um integrante da patrulha o conduz
ao posto policial, exigindo que
ele afirmasse ter caído acidentalmente no tonel.
Segundo outro funcionário
da lei envolvido, a pele do adolescente ficou enrugada "como
se fosse papel amassado".
A defesa dos policiais alegou
que o menino tinha "credibilidade zero", pois era "adolescente e imaturo".
Um juiz íntegro condenou os
policiais. O menino, no entanto, quem lhe devolverá a pele e
a confiança na humanidade?
[processo nš 001977043580-1,
julgado pelo Juiz Nivaldo Mulatinho Filho. Cf. "Revista da
Escola Superior da Magistratura de Pernambuco"]
Mas, de outro lado, como reparar o sofrimento da jovem
violentada e morta, com extrema crueldade? E quem trará
aos seus pais a confiança na humanidade? Um adolescente,
porque pobre, tem o direito de
agir como fera e manter-se impune? Nenhum elo dessa cadeia trágica pode ser esquecido,
se o juízo pretende ser honesto.
Lógica de holofotes
Mas nas crises brota a desonestidade doutrinária. A ética
exige prudência, a qual impõe
medidas. Quando um caso atingiu o plano do escândalo, os habituais donos da verdade ultrapassam os limites conceituais e
factuais, tendo em vista tudo
"explicar".
Na pedagogia da escola e
aprendizado social, vale no entanto a advertência de um especialista em análise de opinião
pública: "Pedir em demasia desencoraja. Mas não solicitar
muito infantiliza. Saibamos,
em conseqüência, graduar, dosar, decompor e assim favorecer o nosso aprendizado"
[François, "Pourquoi Nous
Persistons à Valoriser la Mesure?", Por Que Persistimos em
Valorizar a Medida, em "La
Mesure, Instruments et Philosophie", A Medida, Instrumentos e Filosofia. Jean-Claude
Beaune (ed.)].
Nos casos da TV e do adolescente assassino, é forte o desejo
de oferecer juízos em preto-e-branco. Há um prudente conselho do alemão Erich Auerbach, notável hermeneuta da
vida ocidental e da literatura,
que previne contra a técnica do
holofote, a qual consiste em
"iluminar excessivamente uma
pequena parte de um grande e
complexo contexto, deixando
na escuridão todo o restante
que puder explicar parte. De tal
forma se diz aparentemente a
verdade, pois que o dito é indiscutível, mas tudo não deixa de
ser falsificado, pois que da verdade faz parte toda a verdade,
assim como a correta ligação
das suas partes".
Assim, "o público sempre
volta a cair nesses truques, sobretudo em tempos de inquietação. O truque é fácil de ser
descoberto. Mas falta ao povo
ou ao público, em tempos de
tensão, a vontade séria de fazê-lo" ["A Ceia Interrompida", in
"Mimesis", ed. Perspectiva].
Quantos holofotes, no Brasil,
asseguram apenas interesses
políticos, doutrinários, religiosos! Os fariseus, com suas ideologias de granito, possuem
eternidades para reafirmar clichês e cobrir os adversários de
vitupérios. Falta o tempo para a
prudente pesquisa das causas
que geram os escândalos. Restam a violência e o desalento.
Isso é Brasil.
ROBERTO ROMANO é professor titular de ética
e filosofia política na Universidade Estadual de
Campinas e autor de "Moral e Ciência - A Monstruosidade no Século 18" (ed. Senac/SP).
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