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Amnésia metropolitana
Na falta da unidade formal que têm as cidades européias,
São Paulo faz tábula rasa de sua experiência sensorial
LUIZ RECAMÁN
ESPECIAL PARA A FOLHA
A velocidade das mudanças territoriais e
sociais da cidade de
São Paulo, geradas
por seu crescimento econômico no último século,
cria uma dinâmica de expansão/destruição sem precedentes. Como quase toda megacidade dos países subdesenvolvidos, esse processo se dá sem
que se conforme, ainda que
momentaneamente, um modelo espacial que registre algo de
intenção e ordenação definido
por parâmetros formais, funcionais ou sociais.
O que permanece, e já estamos habituados a isso, é o contínuo alterar das configurações
socioespaciais da metrópole.
Taipa, tijolo, concreto, aço e
vidro sucedem-se na obsolescência alucinada das construções e na sua valorização.
A tranqüilidade que observamos nas grandes cidades européias -abaladas também pelas
grandes transformações sociais das últimas décadas- se
deve ao fato de, apesar das alterações e do crescimento, um
padrão formal, espacial e social
ter se consolidado. E é a partir
dele que se processam as mudanças. Essa idéia de unidade
formal das cidades nos é impossível, e flertamos com ela
apenas de modo cínico.
E, quando dizemos "essa cidade não tem memória", aplicamos um atributo humano a
esse território. Nossa memória
atualiza uma ausência, no tempo ou no espaço.
A plasticidade com que isso
se passa, nos insondáveis processos da psique, reorganiza os
acontecimentos e os ressignifica no presente. Mas a retenção
ou o esquecimento desses
acontecimentos se deve à intensidade da experiência que
gerou tal lembrança.
É por isso que, diante da metrópole moderna, Walter Benjamim anunciou o fim -ou o
empobrecimento- da experiência. Metrópole e memória
rivalizam na consciência alienada. A compressão tempo-espaço que a máquina metropolitana realiza anula progressivamente a possibilidade de ordenarmos os fatos na nossa consciência individual e coletiva.
Não temos mais ausências no
mundo conectado on-line.
Esse fato -a "barbárie positiva" da tábula rasa da experiência- foi o grande ensaio
moderno (arte e arquitetura).
Libertava a massa urbana das
neuroses burguesas advindas
do fim da autenticidade do
mundo anterior à era industrial e tecnológica, em direção
ao novo. Mas também, como
mostrou a história, seria a base
necessária para o constrangimento mecânico e inumano da
exploração fordista.
Cidade patrimônio
Nos libertários anos 1960, a
grande novidade na tentativa
de superação das aporias da arquitetura e urbanismo modernos foi exatamente a reativação
da memória e do sentimento de
pertencimento. Mas aí já estávamos em plena virada cultural, e o sentido buscado na reconstrução da "polis" se diluía
no mundo do espetáculo.
Todo esforço de arquitetos
como Aldo Rossi levaram ao
que o sociólogo Henri-Pierre
Jeudy chama de "patrimonialização das cidades", como anunciava, já no início dos anos
1990, Otília Arantes.
A cidade de São Paulo padece
desses dois extremos da arquitetura: a tábula rasa e o "patrimonialismo", sem, claro, ter alcançado o que de bom essas radicalizações propiciaram na
primeira rodada no local de origem (a ênfase na dimensão social das cidades, quer na habitação coletiva, quer em seus espaços públicos). São, por aqui, resíduos deformados do impulso
original. Ambos se generalizam
e entram em sintonia com os
mecanismos de especulação
imobiliária da cidade.
A Estação da Luz reformada
e minuciosamente recuperada
(sic) enterra seu programa-sentido -a história vivida da
circulação ferroviária e do acesso/interdição à cidade durante
mais de um século- e celebra a
superfície brilhante do exemplar histórico museificado.
LUIZ RECAMÁN é arquiteto e professor de estética no departamento de arquitetura e urbanismo da USP e da Pontifícia Universidade Católica
de Campinas (SP). É co-autor de "Arquitetura
Moderna Brasileira" (Phaidon).
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