São Paulo, domingo, 30 de julho de 2006

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Amnésia metropolitana

Na falta da unidade formal que têm as cidades européias, São Paulo faz tábula rasa de sua experiência sensorial

LUIZ RECAMÁN
ESPECIAL PARA A FOLHA

A velocidade das mudanças territoriais e sociais da cidade de São Paulo, geradas por seu crescimento econômico no último século, cria uma dinâmica de expansão/destruição sem precedentes. Como quase toda megacidade dos países subdesenvolvidos, esse processo se dá sem que se conforme, ainda que momentaneamente, um modelo espacial que registre algo de intenção e ordenação definido por parâmetros formais, funcionais ou sociais.
O que permanece, e já estamos habituados a isso, é o contínuo alterar das configurações socioespaciais da metrópole.
Taipa, tijolo, concreto, aço e vidro sucedem-se na obsolescência alucinada das construções e na sua valorização. A tranqüilidade que observamos nas grandes cidades européias -abaladas também pelas grandes transformações sociais das últimas décadas- se deve ao fato de, apesar das alterações e do crescimento, um padrão formal, espacial e social ter se consolidado. E é a partir dele que se processam as mudanças. Essa idéia de unidade formal das cidades nos é impossível, e flertamos com ela apenas de modo cínico.
E, quando dizemos "essa cidade não tem memória", aplicamos um atributo humano a esse território. Nossa memória atualiza uma ausência, no tempo ou no espaço.
A plasticidade com que isso se passa, nos insondáveis processos da psique, reorganiza os acontecimentos e os ressignifica no presente. Mas a retenção ou o esquecimento desses acontecimentos se deve à intensidade da experiência que gerou tal lembrança.
É por isso que, diante da metrópole moderna, Walter Benjamim anunciou o fim -ou o empobrecimento- da experiência. Metrópole e memória rivalizam na consciência alienada. A compressão tempo-espaço que a máquina metropolitana realiza anula progressivamente a possibilidade de ordenarmos os fatos na nossa consciência individual e coletiva. Não temos mais ausências no mundo conectado on-line.
Esse fato -a "barbárie positiva" da tábula rasa da experiência- foi o grande ensaio moderno (arte e arquitetura). Libertava a massa urbana das neuroses burguesas advindas do fim da autenticidade do mundo anterior à era industrial e tecnológica, em direção ao novo. Mas também, como mostrou a história, seria a base necessária para o constrangimento mecânico e inumano da exploração fordista.

Cidade patrimônio
Nos libertários anos 1960, a grande novidade na tentativa de superação das aporias da arquitetura e urbanismo modernos foi exatamente a reativação da memória e do sentimento de pertencimento. Mas aí já estávamos em plena virada cultural, e o sentido buscado na reconstrução da "polis" se diluía no mundo do espetáculo.
Todo esforço de arquitetos como Aldo Rossi levaram ao que o sociólogo Henri-Pierre Jeudy chama de "patrimonialização das cidades", como anunciava, já no início dos anos 1990, Otília Arantes.
A cidade de São Paulo padece desses dois extremos da arquitetura: a tábula rasa e o "patrimonialismo", sem, claro, ter alcançado o que de bom essas radicalizações propiciaram na primeira rodada no local de origem (a ênfase na dimensão social das cidades, quer na habitação coletiva, quer em seus espaços públicos). São, por aqui, resíduos deformados do impulso original. Ambos se generalizam e entram em sintonia com os mecanismos de especulação imobiliária da cidade.
A Estação da Luz reformada e minuciosamente recuperada (sic) enterra seu programa-sentido -a história vivida da circulação ferroviária e do acesso/interdição à cidade durante mais de um século- e celebra a superfície brilhante do exemplar histórico museificado.


LUIZ RECAMÁN é arquiteto e professor de estética no departamento de arquitetura e urbanismo da USP e da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (SP). É co-autor de "Arquitetura Moderna Brasileira" (Phaidon).

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