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Na boca do povo
Estudos de história social apontam a importância da fofoca na formação da esfera pública
PETER BURKE
COLUNISTA DA FOLHA
Numa tarde quente
no final dos anos
1980, eu passeava
a pé por Araraquara (SP). Na esquina
de uma rua estreita, observei
uma padaria. Em um dos muros recém-caiados, que constituem tentação tão grande para
os pichadores, alguém tinha rabiscado três palavras em letra
maiúscula grande: "Centro de
fofocas".
A primeira coisa que me veio
à cabeça foi tentar imaginar
quem poderia ter escrito a
mensagem -que provavelmente não era uma descrição
sociológica neutra, mas a reação irada de uma vítima anônima, alguém que acreditava ter
sido alvo de mexericos recentes. A segunda coisa foi refletir
sobre a fofoca como fenômeno
social, sobre sua geografia, sua
sociologia e sua história.
Quando falo em "geografia"
da fofoca, não me refiro a sua
distribuição pelo planeta, pois
é pouco provável que exista algum lugar no mundo em que a
fofoca não seja praticada, desfrutada e, é claro, temida.
Existe, porém, uma interessante microgeografia da fofoca.
Ela inclui instituições políticas
importantes. Cortes reais, como a Versalhes de Luís 14, foram grandes centros de mexerico em sua época.
Hoje, essa função foi assumida por assembléias como os
parlamentos ou as câmaras de
deputados, de modo que os jornalistas costumam muitas vezes freqüentar os chamados
"corredores do poder" para se
tornarem os primeiros a divulgar para um público maior o escândalo político mais recente
(com isso transformando a fofoca, que é por definição exclusiva, em "rumor", o que faz com
que ela se espalhe de maneira
muito mais ampla).
Em menor escala
Mas os centros de fofoca são
mais visíveis quando operam
em escala menor, como é o caso
da padaria de Araraquara. Na
França, o que vem à mente são
os cafés; na Inglaterra, os pubs;
na Itália, a "piazza" e, nas pequenas cidades brasileiras tradicionais, como a Cruz Alta tão
vividamente descrita por Erico
Veríssimo, a farmácia local.
A esses centros de sociabilidade predominantemente
masculina podem ser acrescentados alguns pontos de encontro tradicionais de mulheres,
tais como a porta de casa ou um
telhado plano ou, ainda, o poço
ou fonte do bairro, pelo menos
nos tempos anteriores à instalação de água corrente.
Essa distinção entre os centros de fofoca masculinos e femininos nos conduz à sociologia dessa prática. A fofoca é há
muito tempo associada às mulheres -tanto assim que o pregador francês do século 13 Jacques de Vitry chegou a identificar um demônio específico, Tutivillus, cuja ocupação principal consistia em incentivar as
mulheres a fofocar.
Várias feministas reagiram a
essa calúnia contra seu gênero,
dizendo que a vinculação das
mulheres à fofoca não passa de
preconceito masculino.
Quando homens se reúnem
em um grupo para conversar,
diz essa reação, eles costumam
descrever o que fazem como
uma "conversa" ou "discussão"
e afirmar que os temas de que
falam são questões públicas,
tais como política ou esportes.
Por outro lado, quando os homens ouvem mulheres conversando entre elas, eles chamam
de "fofoca" o que elas fazem,
presumindo que os temas de
sua conversa sejam fatos da esfera privada.
A análise social da fofoca não
se restringe à questão do gênero de quem a faz. O sociólogo
Norbert Elias publicou um estudo intitulado "Os Estabelecidos e os Outsiders" [Zahar], em
que trata de um vilarejo inglês e
um novo conjunto habitacional
construído ao lado dele.
Nesse livro, Elias discutiu a
contribuição da fofoca à construção das duas comunidades,
observando tanto o cimentar
das relações sociais pela "fofoca-elogio" quanto a exclusão
dos outsiders pela "fofoca/atribuição de culpa" (para muitas
pessoas, a fofoca ou mexerico é
por definição algo mal-intencionado, mas Elias encarou o
assunto sob uma ótica mais
ampla).
De maneira semelhante, o
antropólogo Max Gluckman,
meio século atrás, descreveu a
função da fofoca como sendo
um meio de excluir os outsiders
e, com isso, encorajar a formação de laços no interior de um
grupo específico.
Essa visão da fofoca como um
mecanismo de fortalecimento
de laços foi criticada por alguns
outros antropólogos. Um deles,
baseado em seu trabalho de
campo no Caribe, descreveu a
fofoca não como instrumental,
mas sim como um fim em si
mesmo, uma performance,
uma arte.
Outros analistas focalizam
não a "comunidade" (que vêem
como mito), mas redes de indivíduos que agem em prol de
seus interesses próprios e utilizam a fofoca e a gestão de informações ou para causar boa impressão ou para competir com
seus rivais de outras maneiras.
A importância do trivial
Em suma, a fofoca possui sua
geografia e sociologia próprias.
Será que também possui uma
história? Para os historiadores
tradicionais, a fofoca, como o
"mito", é simplesmente informação inexata, a ser detectada
e então descartada.
Para esses historiadores, os
mexericos difundidos por pessoas importantes e os que dizem respeito a elas não merecem crédito, enquanto as fofocas do resto de nós são indignas
da atenção dos estudiosos. Por
esses motivos, até alguns anos
atrás os historiadores desprezavam o assunto.
Nos últimos anos, alguns deles descobriram a fofoca do
mesmo modo que descobriram
a importância de "tomar nota
de trivialidades". Em outras palavras, os historiadores hoje
têm consciência de que aparentes trivialidades podem oferecer pistas para a compreensão
das mentalidades ou premissas
das pessoas e, desse modo, oferecer maneiras de chegar a uma
compreensão mais profunda de
uma cultura passada.
Como já foi demonstrado por
antropólogos em diversos casos, especialmente, mas não exclusivamente, casos tirados das
culturas mediterrâneas ou latinas, a fofoca é fundamental na
construção, manutenção e destruição da honra ou reputação
de uma família ou um indivíduo. Em outras palavras, essa
atividade privada faz uma contribuição para a esfera pública.
Má fama
Uma frase que reaparece a
todo momento nos registros judiciais europeus dos séculos 16
e 17 diz respeito à "reputação
pública" (em francês, o "bruit
commun", em italiano, a "fama
commune", e, em espanhol, a
"pública voz" etc.).
Normalmente, o fato de um
indivíduo ter má reputação não
bastava para que fosse condenado por homicídio, heresia,
blasfêmia ou bruxaria, mas,
com freqüência, era suficiente
para motivar uma investigação
pelas autoridades religiosas ou
políticas, às vezes com conseqüências fatais para o acusado.
Perguntava-se aos vizinhos
do suspeito ou suspeita o que
sabiam a seu respeito. Era comum que a resposta começasse
com "eu cuido de minha própria vida", mas, depois de proferida essa frase ritual, as pessoas demonstravam possuir
conhecimento detalhado sobre
a vida "particular" do acusado.
Naturalmente, os investigadores tinham consciência do
problema dos fuxicos mal-intencionados (a Inquisição, por
exemplo, costumava pedir aos
suspeitos, no início de seus interrogatórios, que identificassem seus inimigos), mas isso
não os impedia de levar adiante
suas investigações.
Aparentemente, as autoridades se pautavam pela regra segundo a qual, se alguns poucos
indivíduos fazem uma acusação, ela pode ser calúnia divulgada de má-fé, mas, se um número suficiente de pessoas participa da divulgação de uma
história, esta se torna "comum"
ou "pública", justificando o trabalho e o custo da investigação.
Até hoje polícia, detetives e
jornalistas costumam conversar com vizinhos como parte
normal de suas investigações
de casos de homicídio, por
exemplo, embora, numa era como a nossa, quando tantas pessoas vivem em grandes cidades,
é pouco provável que a maioria
das pessoas saiba tanto sobre as
vidas privadas de seus vizinhos
quanto era o caso em séculos
anteriores. Talvez isso não sirva de consolo a quem fez a pichação em Araraquara, mas a
padaria dessa cidade, como
centro de fofocas, provavelmente é uma instituição em
processo de declínio.
PETER BURKE é historiador inglês, autor de "O
Que É História Cultural?" (ed. Jorge Zahar). Escreve regularmente na seção "Autores".
Tradução de Clara Allain.
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