São Paulo, domingo, 30 de julho de 2006

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Na boca do povo

Estudos de história social apontam a importância da fofoca na formação da esfera pública

PETER BURKE
COLUNISTA DA FOLHA

Numa tarde quente no final dos anos 1980, eu passeava a pé por Araraquara (SP). Na esquina de uma rua estreita, observei uma padaria. Em um dos muros recém-caiados, que constituem tentação tão grande para os pichadores, alguém tinha rabiscado três palavras em letra maiúscula grande: "Centro de fofocas".
A primeira coisa que me veio à cabeça foi tentar imaginar quem poderia ter escrito a mensagem -que provavelmente não era uma descrição sociológica neutra, mas a reação irada de uma vítima anônima, alguém que acreditava ter sido alvo de mexericos recentes. A segunda coisa foi refletir sobre a fofoca como fenômeno social, sobre sua geografia, sua sociologia e sua história.
Quando falo em "geografia" da fofoca, não me refiro a sua distribuição pelo planeta, pois é pouco provável que exista algum lugar no mundo em que a fofoca não seja praticada, desfrutada e, é claro, temida. Existe, porém, uma interessante microgeografia da fofoca.
Ela inclui instituições políticas importantes. Cortes reais, como a Versalhes de Luís 14, foram grandes centros de mexerico em sua época. Hoje, essa função foi assumida por assembléias como os parlamentos ou as câmaras de deputados, de modo que os jornalistas costumam muitas vezes freqüentar os chamados "corredores do poder" para se tornarem os primeiros a divulgar para um público maior o escândalo político mais recente (com isso transformando a fofoca, que é por definição exclusiva, em "rumor", o que faz com que ela se espalhe de maneira muito mais ampla).

Em menor escala
Mas os centros de fofoca são mais visíveis quando operam em escala menor, como é o caso da padaria de Araraquara. Na França, o que vem à mente são os cafés; na Inglaterra, os pubs; na Itália, a "piazza" e, nas pequenas cidades brasileiras tradicionais, como a Cruz Alta tão vividamente descrita por Erico Veríssimo, a farmácia local.
A esses centros de sociabilidade predominantemente masculina podem ser acrescentados alguns pontos de encontro tradicionais de mulheres, tais como a porta de casa ou um telhado plano ou, ainda, o poço ou fonte do bairro, pelo menos nos tempos anteriores à instalação de água corrente.
Essa distinção entre os centros de fofoca masculinos e femininos nos conduz à sociologia dessa prática. A fofoca é há muito tempo associada às mulheres -tanto assim que o pregador francês do século 13 Jacques de Vitry chegou a identificar um demônio específico, Tutivillus, cuja ocupação principal consistia em incentivar as mulheres a fofocar.
Várias feministas reagiram a essa calúnia contra seu gênero, dizendo que a vinculação das mulheres à fofoca não passa de preconceito masculino. Quando homens se reúnem em um grupo para conversar, diz essa reação, eles costumam descrever o que fazem como uma "conversa" ou "discussão" e afirmar que os temas de que falam são questões públicas, tais como política ou esportes.
Por outro lado, quando os homens ouvem mulheres conversando entre elas, eles chamam de "fofoca" o que elas fazem, presumindo que os temas de sua conversa sejam fatos da esfera privada. A análise social da fofoca não se restringe à questão do gênero de quem a faz. O sociólogo Norbert Elias publicou um estudo intitulado "Os Estabelecidos e os Outsiders" [Zahar], em que trata de um vilarejo inglês e um novo conjunto habitacional construído ao lado dele.
Nesse livro, Elias discutiu a contribuição da fofoca à construção das duas comunidades, observando tanto o cimentar das relações sociais pela "fofoca-elogio" quanto a exclusão dos outsiders pela "fofoca/atribuição de culpa" (para muitas pessoas, a fofoca ou mexerico é por definição algo mal-intencionado, mas Elias encarou o assunto sob uma ótica mais ampla).
De maneira semelhante, o antropólogo Max Gluckman, meio século atrás, descreveu a função da fofoca como sendo um meio de excluir os outsiders e, com isso, encorajar a formação de laços no interior de um grupo específico.
Essa visão da fofoca como um mecanismo de fortalecimento de laços foi criticada por alguns outros antropólogos. Um deles, baseado em seu trabalho de campo no Caribe, descreveu a fofoca não como instrumental, mas sim como um fim em si mesmo, uma performance, uma arte.
Outros analistas focalizam não a "comunidade" (que vêem como mito), mas redes de indivíduos que agem em prol de seus interesses próprios e utilizam a fofoca e a gestão de informações ou para causar boa impressão ou para competir com seus rivais de outras maneiras.

A importância do trivial
Em suma, a fofoca possui sua geografia e sociologia próprias. Será que também possui uma história? Para os historiadores tradicionais, a fofoca, como o "mito", é simplesmente informação inexata, a ser detectada e então descartada.
Para esses historiadores, os mexericos difundidos por pessoas importantes e os que dizem respeito a elas não merecem crédito, enquanto as fofocas do resto de nós são indignas da atenção dos estudiosos. Por esses motivos, até alguns anos atrás os historiadores desprezavam o assunto.
Nos últimos anos, alguns deles descobriram a fofoca do mesmo modo que descobriram a importância de "tomar nota de trivialidades". Em outras palavras, os historiadores hoje têm consciência de que aparentes trivialidades podem oferecer pistas para a compreensão das mentalidades ou premissas das pessoas e, desse modo, oferecer maneiras de chegar a uma compreensão mais profunda de uma cultura passada.
Como já foi demonstrado por antropólogos em diversos casos, especialmente, mas não exclusivamente, casos tirados das culturas mediterrâneas ou latinas, a fofoca é fundamental na construção, manutenção e destruição da honra ou reputação de uma família ou um indivíduo. Em outras palavras, essa atividade privada faz uma contribuição para a esfera pública.

Má fama
Uma frase que reaparece a todo momento nos registros judiciais europeus dos séculos 16 e 17 diz respeito à "reputação pública" (em francês, o "bruit commun", em italiano, a "fama commune", e, em espanhol, a "pública voz" etc.).
Normalmente, o fato de um indivíduo ter má reputação não bastava para que fosse condenado por homicídio, heresia, blasfêmia ou bruxaria, mas, com freqüência, era suficiente para motivar uma investigação pelas autoridades religiosas ou políticas, às vezes com conseqüências fatais para o acusado. Perguntava-se aos vizinhos do suspeito ou suspeita o que sabiam a seu respeito. Era comum que a resposta começasse com "eu cuido de minha própria vida", mas, depois de proferida essa frase ritual, as pessoas demonstravam possuir conhecimento detalhado sobre a vida "particular" do acusado.
Naturalmente, os investigadores tinham consciência do problema dos fuxicos mal-intencionados (a Inquisição, por exemplo, costumava pedir aos suspeitos, no início de seus interrogatórios, que identificassem seus inimigos), mas isso não os impedia de levar adiante suas investigações.
Aparentemente, as autoridades se pautavam pela regra segundo a qual, se alguns poucos indivíduos fazem uma acusação, ela pode ser calúnia divulgada de má-fé, mas, se um número suficiente de pessoas participa da divulgação de uma história, esta se torna "comum" ou "pública", justificando o trabalho e o custo da investigação.
Até hoje polícia, detetives e jornalistas costumam conversar com vizinhos como parte normal de suas investigações de casos de homicídio, por exemplo, embora, numa era como a nossa, quando tantas pessoas vivem em grandes cidades, é pouco provável que a maioria das pessoas saiba tanto sobre as vidas privadas de seus vizinhos quanto era o caso em séculos anteriores. Talvez isso não sirva de consolo a quem fez a pichação em Araraquara, mas a padaria dessa cidade, como centro de fofocas, provavelmente é uma instituição em processo de declínio.


PETER BURKE é historiador inglês, autor de "O Que É História Cultural?" (ed. Jorge Zahar). Escreve regularmente na seção "Autores".
Tradução de Clara Allain.


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