São Paulo, domingo, 30 de outubro de 2005

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Ponto de fuga

Legumes e defuntos

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

A animação por computador é rica de muitos recursos e chega a resultados excelentes. Inventivos, irresistíveis, "Shrek" e "Toy Story" foram concebidos graças a essas técnicas. Mas aquelas epidermes, que têm a textura do plástico e as cores dos chicletes de bola, são unidas, lisas, artificiais, com alguma coisa de homogêneo demais, de simplificado, de esquisito. É compreensível que permaneça, em alguns criadores, uma nostalgia pelos modos artesanais dos desenhos animados.
Os longa-metragens "Wallace e Gromit -A Batalha dos Vegetais" e "A Noiva-Cadáver", ambos nas telas atualmente, voltam-se para o velho método do "stopmotion". São bonequinhos filmados em cenários miniatura, imagem por imagem. Nick Park e Steve Box criaram "Wallace e Gromit". Amorosos da materialidade manual, deixaram as marcas de suas impressões digitais na massa com a qual modelam seus personagens.
Os dois desenhos põem em cena um mundo antigo. Tim Burton inventa um neogótico vitoriano, com mansões assustadoras, arcos em ogiva e florestas noturnas cheias de corvos. Wallace e seu cão Gromit se deslocam numa Inglaterra nada moderna, em meio a "gentlemen farmers", "ladies" apaixonadas por jardinagem e toda uma população de aldeia que se prepara para o concurso anual do maior legume. É um humor alimentado pelo "nonsense" puramente inglês, cultivado pelo menos desde os tempos de Gilbert & Sullivan, no século 19, e que atingiu seu apogeu nas formidáveis maluquices de Monty Python.

Cenoura
Em "Wallace e Gromit", o velho lobisomem vem substituído por um "coelhosomem" grandão. À ironia sobre o filme de terror acrescenta-se uma poética da bricolagem mecânica em cadeia (bem presente também em alguns filmes de Tim Burton), gênero "invenção do professor Pardal". Ela é o termômetro da harmonia: se estiver funcionando, é sinal de que tudo vai bem. O monstro, as máquinas e o mundo têm, no entanto, um princípio substantivo primordial, um substrato, uma "arché" absoluta: a massa de modelagem.
Pé e chinelo, comida e prato, monstro e abóbora, sente-se que tudo se reduz a essa matéria dúctil, familiar desde a infância de cada espectador.

Sudário
O coral das aranhas tecelãs podia estar em qualquer das óperas-bufas de Gilbert & Sullivan e assim todo o número musical do casamento, que Tim Burton inseriu em "A Noiva-Cadáver". A trilha sonora é um esplendor, cheia de invenções e referências (entre elas, "Tannhauser" e o tema de "E o Vento Levou...", de Max Steiner).
Tim Burton tem a faculdade de misturar e fazer sentir, ao mesmo tempo, humor, angústia, divertimento e mal-estar. Seus personagens, sempre muito individuais, solitários, deslocados, parecem referir-se, de certo modo, à teoria da múmia, a boa múmia de André Bazin. Se o cinema é um mundo de fantasmas, é nele que as coisas alegres e vigorosas, acontecem.
"A Noiva-Cadáver" mostra um cotidiano triste, cinzento, severo, convencional, hipócrita e desprovido de afeição. Os defuntos, ao contrário, são generosos, calorosos, coloridos e sabem se divertir à beça. Quando voltam entre os vivos, é para trazer-lhes o afeto e a felicidade perdida.
O cinema é o mundo dos mortos, daquilo que não existe mais. Como diz Debbie Reinolds a Gene Kelly em "Cantando na Chuva": "Você é apenas uma sombra". Mas ele detém a vitalidade primordial, infantil, que a realidade destrói.
Os filmes de Tim Burton trazem uma complexa e ambígua nostalgia da infância. Nos seus "bons" adultos ela se prolongou, marcando-os por sua pureza, mas também por uma monstruosidade, ao mesmo tempo simpática e dolorosa. Seu Edward tem mãos de tesoura, e seu Willy Wonka se parece com Michael Jackson.

Mikado
"Os Piratas de Penzance", ópera-bufa de Gilbert & Sullivan, foi muito bem representada, faz pouco, no teatro São Pedro, em SP, com ótimos cantores. Quem não viu, quem não conhece Gilbert & Sullivan, os autores, pode descobrir o universo deles no suculento filme "Topsy-Turvy", de Mike Leigh.


Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br


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