|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Ponto de fuga
Legumes e defuntos
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
A
animação por computador é rica
de muitos recursos e chega a resultados excelentes. Inventivos, irresistíveis, "Shrek" e "Toy Story" foram concebidos graças a essas técnicas.
Mas aquelas epidermes, que têm a textura
do plástico e as cores dos chicletes de bola,
são unidas, lisas, artificiais, com alguma
coisa de homogêneo demais, de simplificado, de esquisito. É compreensível que permaneça, em alguns criadores, uma nostalgia pelos modos artesanais dos desenhos
animados.
Os longa-metragens "Wallace e Gromit
-A Batalha dos Vegetais" e "A Noiva-Cadáver", ambos nas telas atualmente, voltam-se para o velho método do "stopmotion".
São bonequinhos filmados em cenários miniatura, imagem por imagem. Nick Park e
Steve Box criaram "Wallace e Gromit".
Amorosos da materialidade manual, deixaram as marcas de suas impressões digitais
na massa com a qual modelam seus personagens.
Os dois desenhos põem em cena um
mundo antigo. Tim Burton inventa um
neogótico vitoriano, com mansões assustadoras, arcos em ogiva e florestas noturnas
cheias de corvos. Wallace e seu cão Gromit
se deslocam numa Inglaterra nada moderna, em meio a "gentlemen farmers", "ladies" apaixonadas por jardinagem e toda
uma população de aldeia que se prepara
para o concurso anual do maior legume. É
um humor alimentado pelo "nonsense"
puramente inglês, cultivado pelo menos
desde os tempos de Gilbert & Sullivan, no
século 19, e que atingiu seu apogeu nas formidáveis maluquices de Monty Python.
Cenoura
Em "Wallace e Gromit", o velho lobisomem vem substituído por um "coelhosomem" grandão. À ironia sobre o filme de
terror acrescenta-se uma poética da bricolagem mecânica em cadeia (bem presente
também em alguns filmes de Tim Burton),
gênero "invenção do professor Pardal". Ela
é o termômetro da harmonia: se estiver
funcionando, é sinal de que tudo vai bem.
O monstro, as máquinas e o mundo têm,
no entanto, um princípio substantivo primordial, um substrato, uma "arché" absoluta: a massa de modelagem.
Pé e chinelo, comida e prato, monstro e
abóbora, sente-se que tudo se reduz a essa
matéria dúctil, familiar desde a infância de
cada espectador.
Sudário
O coral das aranhas tecelãs podia estar em
qualquer das óperas-bufas de Gilbert & Sullivan e assim todo o número musical do
casamento, que Tim Burton inseriu em "A
Noiva-Cadáver". A trilha sonora é um esplendor, cheia de invenções e referências
(entre elas, "Tannhauser" e o tema de "E o
Vento Levou...", de Max Steiner).
Tim Burton tem a faculdade de misturar e
fazer sentir, ao mesmo tempo, humor, angústia, divertimento e mal-estar. Seus personagens, sempre muito individuais, solitários, deslocados, parecem referir-se, de
certo modo, à teoria da múmia, a boa múmia de André Bazin. Se o cinema é um
mundo de fantasmas, é nele que as coisas
alegres e vigorosas, acontecem.
"A Noiva-Cadáver" mostra um cotidiano
triste, cinzento, severo, convencional, hipócrita e desprovido de afeição. Os defuntos,
ao contrário, são generosos, calorosos, coloridos e sabem se divertir à beça. Quando
voltam entre os vivos, é para trazer-lhes o
afeto e a felicidade perdida.
O cinema é o mundo dos mortos, daquilo
que não existe mais. Como diz Debbie Reinolds a Gene Kelly em "Cantando na Chuva": "Você é apenas uma sombra". Mas ele
detém a vitalidade primordial, infantil, que
a realidade destrói.
Os filmes de Tim Burton trazem uma
complexa e ambígua nostalgia da infância.
Nos seus "bons" adultos ela se prolongou,
marcando-os por sua pureza, mas também
por uma monstruosidade, ao mesmo tempo simpática e dolorosa. Seu Edward tem
mãos de tesoura, e seu Willy Wonka se parece com Michael Jackson.
Mikado
"Os Piratas de Penzance", ópera-bufa de
Gilbert & Sullivan, foi muito bem representada, faz pouco, no teatro São Pedro, em SP,
com ótimos cantores. Quem não viu, quem
não conhece Gilbert & Sullivan, os autores,
pode descobrir o universo deles no suculento filme "Topsy-Turvy", de Mike Leigh.
Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br
Texto Anterior: Os dez + Próximo Texto: Biblioteca básica - Boris Schnaiderman: Guerra e Paz Índice
|