São Paulo, domingo, 30 de outubro de 2005 |
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Fé e suspeita em Freud
SERGIO PAULO ROUANET
Mas a civilização em si está atravessada por forças contraditórias. O mesmo dualismo que rege a vida psíquica do indivíduo -pulsão da vida (Eros) versus pulsão da morte (Tânatos)- se manifesta na civilização. O trabalho da civilização é conduzido por Eros, cuja vocação imanente é ligar conjuntos cada vez mais vastos -famílias, povos, nações, humanidade. Mas esse objetivo é contrariado por Tânatos, a pulsão da morte, que, extrojetada, pode transformar-se em destrutividade cega. Eros liga, Tânatos desliga e dissocia. Mas a relação entre Eros e a civilização está longe de ser unívoca. Por um lado, a civilização inibe e restringe os impulsos eróticos do indivíduo, por sua natureza associais e infensos a limites externos. E, por outro lado, a vocação de Eros de criar conjuntos cada vez mais amplos é bloqueada pelo narcisismo de grupo, o "narcisismo das pequenas diferenças", que leva os membros de uma comunidade a entrincheirar-se em sua identidade coletiva, hostilizando os membros de outro grupos. Ou seja, Eros fica fiel à sua essência quando cria laços de identificação intragrupal. Mas essa coesão é obtida a um custo altíssimo, o deslocamento dos impulsos agressivos para fora. O resultado é o nacionalismo, a rivalidade entre as nações e a guerra. Fica em aberto o desfecho do drama da civilização: na batalha "titânica" travada entre os dois "poderes celestiais", Eros e Tânatos, pode-se esperar que Eros leve a melhor, mas ninguém poderá prever o resultado final. Duas deformações "O Mal-Estar na Civilização" despertou e continua a despertar controvérsias apaixonadas. As reações ao livro podem ser distribuídas em duas correntes. Uma delas, de orientação marxista, critica o pessimismo de Freud e admite a possibilidade de que, numa sociedade mais justa, Eros consiga controlar o potencial de aniquilamento de Tânatos e de que a razão, Logos, venha a assumir um papel mais decisivo na administração dos impulsos humanos, em detrimento dos mecanismos inconscientes (Reich, Marcuse). A outra, pelo contrário, radicaliza esse pessimismo, afirmando que nenhuma transformação social poderia alterar os dados básicos do psiquismo humano, que incluem a necessidade da ilusão, alimentada por processos inconscientes, e o livre funcionamento da pulsão da morte. A meu ver, são duas deformações de Freud. A primeira é uma deformação angelista. O homem é visto como um puro efeito das relações sociais. É nelas que está radicado o mal. Transformadas essas relações, a inocência natural do homem virá à tona. Há algo de gnóstico nessa visão, uma certa rejeição do corpo, uma certa desmaterialização da "physis": para essa corrente, o homem não é carnal, é social. A segunda é uma deformação naturalista. O homem é o que é, em sua materialidade, em sua biologia, em seu psiquismo. Seu destino está predeterminado por essa realidade, e todos os esforços para modifica-la são ou utópicos ou indesejáveis. As duas deformações têm algo de teológico. A primeira vem de uma teologia otimista, que nega o pecado original. A segunda vem de uma teologia pessimista, agostiniana, que parte da hipótese de uma "natura deleta", de uma depravação hereditária do homem, capaz de resistir a todas as transformações sociais. Uma releitura sem preconceitos de "O Mal-Estar na Civilização" mostra que Freud se situa entre essas duas perspectivas. Ele permanece aquém do angelismo e vai além do naturalismo. É claramente anti-angelista quando aceita como parte de nossa herança antropológica a existência de uma predisposição à violência e quando afirma a existência de um aparelho pulsional especificamente humano, além do mero instinto, que condena o homem à falta, ao inacabamento, à frustração socialmente necessária. É resolutamente anti-angelista quando nega que a revolução social possa modificar dados fundamentais da natureza humana, como a propensão à agressividade. Certezas e dúvidas Mas vai além do naturalismo, na medida em que reconhece a influência fortíssima do mundo social. Existe, para ele, uma violência externa ilegítima, que não visa manter a vida civilizada como tal, e sim perpetuar uma ordem social injusta. O que significa, em linguagem clara, que boa parte da repressão pulsional se tornaria supérflua no momento em que fossem corrigidas as assimetrias de riqueza e de poder, reduzindo um dos fatores que contribuem para a infelicidade humana. A verdade é que Freud era ao mesmo tempo um pensador iluminista e um cético. Apostava no Iluminismo, sabendo que podia perder a aposta. Enquanto iluminista, acreditava na utopia de uma consciência transparente para si mesma, no plano individual, e na utopia de uma sociedade regida pela razão, no plano coletivo. Enquanto cético, duvidava da viabilidade desse duplo programa e distanciava-se de qualquer utopia. Num mundo em que nem podemos aderir às antigas certezas nem resignar-nos a uma vida sem esperança, é importante seguirmos o exemplo de Freud. Ele nos permite combinar fé e dúvida, a crença na emancipação com a suspeita de que a salvação não é deste mundo. Sergio Paulo Rouanet é sociólogo, autor de "Os Dez Amigos de Freud" (dois volumes, Companhia das Letras). Texto Anterior: + autores: História das boas maneiras Próximo Texto: + livros: Os novos anos dourados Índice |
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