São Paulo, domingo, 30 de outubro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ livros

Aos 78 anos, o alemão Günter Grass, que ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1999, fala da autobiografia que está preparando, explica a relação entre ficção e história e pede um contrapeso ao capitalismo

Os novos anos dourados

DANIEL VERNET

A mesa está juncada de folhas de papel escurecidas que o escritor alemão Günter Grass [1927] arranja cuidadosamente em duas pilhas: o que já foi relido e o que ainda não foi.
É o manuscrito de seu próximo livro, uma autobiografia. "Uma autobiografia escrita à minha maneira", explica Grass, com todo o ceticismo que se liga ao exercício autobiográfico. "O que aconteceu há 50 anos, eu conto aqui de uma maneira, ali de outra, conforme os interlocutores, com uma paleta de variações. Essa autobiografia também é um protesto contra a pretensão da existência de uma única verdade. Existem várias verdades."


Não podemos abolir o capitalismo, mas é preciso civilizá-lo


O livro cobrirá sua juventude, da infância em Danzig (hoje Gdansk, na Polônia) até a temporada em Paris no fim dos anos 50. "Depois não é tão interessante. É conhecido. Mas me senti instigado a escrever sobre a evolução de um jovem que foi soldado aos 17 anos e depois prisioneiro, que em seguida procurou seu caminho como escultor antes de entrar pouco a pouco na literatura."
Günter Grass recebe em sua casa em Schleswig-Holstein, a poucos quilômetros de Lübeck, numa paisagem de lagos e colinas que lembra sua região natal de Gdansk. O gabinete do escritor é vizinho ao ateliê do escultor. Grass trabalha em ciclos. Depois de terminar sua autobiografia, voltará aos dançarinos e dançarinas de terracota preparados para uma próxima exposição.
Alguns dias antes, em uma pequena cidade próxima, ele leu em público trechos de seu romance "Um Campo Vasto", que tem como pano de fundo a reunificação alemã.

Arrogância ocidental
Foi pouco antes do dia 3 de outubro, dia da união e que se tornou a data nacional alemã. Grass manteve sua postura crítica sobre a maneira como os dois Estados alemães foram unificados: "Cerca de 90% do leste pertencem ao oeste. É uma expropriação terrível, e muitos erros são irreparáveis. O oeste não aceitou a biografia dos alemães do leste, que carregaram o maior peso da derrota, enquanto os alemães começaram e perderam a guerra juntos. No leste também houve uma reconstrução, que, pelos critérios ocidentais, não foi exatamente maravilhosa, mas de todo modo foi um sucesso. Tudo isso foi descartado porque havia sido feito pelo modelo alemão-oriental. É uma arrogância ocidental pela qual continuamos pagando".
Se a literatura tem um efeito é o de fazer ressurgir o que se perdeu; não reconquistá-lo, mas atualizá-lo quando corre o risco de ser escondido sob o peso do passado e da política. "A literatura é um antídoto para o esquecimento", diz o Prêmio Nobel de 1999. Desde "O Tambor" até "Passo de Caranguejo", Grass quis escrever, no estilo de romance picaresco que reivindica, a história vista de baixo, do ponto de vista dos perdedores e dos vencidos. "A vitória idiotiza", afirma.
Alguns críticos de esquerda censuraram Grass por ter mostrado em "Passo de Caranguejo" os passageiros alemães do navio Wilhelm-Gustloff, que foi afundado por um torpedo soviético em janeiro de 1945, como vítimas da guerra, quebrando assim um tabu da esquerda alemã.

Vítimas da história
Grass confirma: "Sim, vítimas de sua própria história... A geração de 68 não queria ouvir falar disso. Com razão, ela protestou contra a geração de seus pais, que se calou. Mas não quis levar em conta o que essa geração, sem dúvida por sua própria culpa -foi a que levou Hitler ao poder-, havia sofrido".
A lembrança do sofrimento dos alemães durante a guerra e no pós-guerra imediato, com os 12 a 14 milhões de refugiados expulsos da Polônia, dos Sudetos ou da Prússia Oriental, não deve ser um assunto proibido, para que a direita não o monopolize, diz.
Nos anos 1980-90, os jovens autores alemães tentaram se desviar da história. Eles escreviam uma literatura que Grass qualifica de "umbilical" -"com 30 anos ou menos já redigiam sua autobiografia". A reunificação lhes trouxe uma nova temática. Os alemães não escapam do passado, de uma forma ou de outra. O confronto é permanente, como a tentação de pôr um ponto final.
"É claro que, como alemães, meus netos têm mais autoconfiança do que meus filhos, mesmo no estrangeiro", explica. "Mas a discussão sobre o passado ressurge, de geração em geração. E eu considero isso um bem. Podemos dizer que não temos escolha. A derrota foi tal que não podemos agir de outro modo. Talvez seja uma ironia da história o fato de só chegarmos a uma análise de nosso próprio comportamento graças a uma derrota tão completa. Quando penso que as potências vitoriosas -que têm crimes muito menos graves a censurar, por exemplo, o colonialismo- se recusam a vê-los, acho um escândalo."

Escritor-cidadão
Günter Grass não é um escritor militante. É um escritor que se lembra de também ser cidadão. Ele não concebe o engajamento como a assinatura freqüente de manifestos de protesto, mas como a participação no trabalho "modesto e fatigante" da política: por exemplo, nas campanhas eleitorais. Gerhard Schröder lhe parece um "pragmático consciencioso" que não tem a visão política do primeiro chanceler social-democrata da República Federal.
Grass elogia o Partido Verde por ter "enriquecido" a política social-democrata de preocupações ecológicas, mas o critica por ter ficado próximos demais de sua origem, a classe média.
A grande coalizão que se delineia [segundo a qual a conservadora Angela Merkel se tornou a primeira mulher a ocupar a Chancelaria alemã, como parte de um acordo pelo qual Gerhard Schröder se afastou da chefia do governo, mas seu partido continuou influente na elaboração das políticas], lhe parece um mal menor. Da primeira vez em que os democrata-cristãos e os social-democratas estiveram juntos no governo, de 1966 a 1969, ele qualificou essa aliança de "triste casamento".
Quarenta anos depois, essa parece ser a única solução para reformar a Alemanha. "É preciso voltar à economia social de mercado", diz Günter Grass. "Desde que o capitalismo perdeu o contrapeso, enlouqueceu. Tudo o que faz a economia de mercado é destruído por métodos anticapitalistas no próprio seio do capitalismo. Não podemos abolir o capitalismo, mas é preciso civilizá-lo. Esse deveria ser o objetivo das iniciativas européias, inclusive como alternativa aos EUA", acrescenta o escritor, lamentando que "para punir [o presidente francês Jacques] Chirac", os franceses tenham votado contra a Constituição européia.
Juntamente com alguns intelectuais alemães, assinara um apelo a "seus amigos franceses" para que não fizessem a Europa retroceder vários anos. Em vão. "Foi uma grande decepção", mas que não o dissuade de continuar interferindo na política. "Também faço isso um pouco por razões egoístas. Acharia uma pena que essa tradição de envolvimento dos escritores que surgiu na Alemanha do pós-guerra fosse interrompida. Quero passar o bastão à nova geração."

Este texto foi publicado no "Le Monde".
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.


Texto Anterior: Fé e suspeita em Freud
Próximo Texto: Günter Grass no Brasil
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.