São Paulo, domingo, 30 de outubro de 2005

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Uma periferia chamada Brasil

"Obras Reunidas" de Ignácio Rangel mostram um economista que evitou a fúria dos textos marxistas

GILBERTO VASCONCELLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Não se trata de um economista a mais; Ignácio Rangel (1914-1994) foi um pensador da economia que se empenhou em deslindar a particularidade da sustentação material da vida na sociedade brasileira, valendo-se do marxismo como método analítico, embora em sua maneira de escrever (e nele é visível a preocupação, rara entre economistas, de se expressar com estilo) não se observe a iracúndia dos autores marxistas que refletiram sobre o Brasil, a exemplo de um Nelson Werneck Sodré, de um Darcy Ribeiro ou de um Alberto Passos Guimarães.
É surpreendente em Rangel essa placidez no estilo de escrever sobre economia, sabendo que ele foi preso de 1935 a 1937 junto com Carlos Marighela, deu aula no Iseb [Instituto Superior de Estudos Brasileiros] em 1960 e, mais tarde, tornou-se amigo de Milton Campos e Roberto Campos, os representantes da "direita histórica" e entreguista.


Rangel repete várias vezes que a história o surpreendeu


Segundo Rangel, o Plano de Metas de Juscelino Kubitschek feito por Roberto Campos, associação de empresas nacionais com empresas estrangeiras, era o casamento da panela de barro com a panela de ferro. A despeito de ser marxista e de sua vivência no Iseb, tinha admiração por Eugênio Gudin, a quem considerava um grande escritor, o qual um dia ainda iria escrever em versos assuntos de economia.

Dualidade básica
Convém, no entanto, não injustiçar o mestre maranhense, conhecedor em profundidade de que o impulso condutor da economia brasileira se encontrava no exterior. Disso o aspecto trágico e, ao mesmo tempo ridículo, é o endividamento sem fim: "O chafariz da ajuda externa". Na década de 80, o capitalismo financeiro brasileiro faz a simbiose de indústria e banco na seqüência do capitalismo de Estado.
Tudo no Brasil, conforme a lei da dualidade básica, reveste-se de um duplo aspecto, misto, bifronte, pendular, ambivalente, absolutamente tudo: o latifúndio, a indústria, o comércio, o capital, o trabalho e a cultura. Esse é o traço específico da economia nacional, de que se utiliza Ignácio Rangel para explicar os pactos de poder e as classes sociais: em nosso país as etapas de desenvolvimento histórico convivem todas juntas.
Rangel repete várias vezes que a história o surpreendeu: não poderia, sendo de esquerda, revolucionário, marxista, conceber a industrialização do Brasil sem que fosse realizada a reforma agrária, mas o fato é que a democracia burguesa do capitalismo industrial brasileiro pulou a etapa da reforma agrária. O latifúndio de senhores de escravos. O latifúndio feudal. O latifúndio capitalista. O latifúndio financeiro.
Nestes cinco séculos de latifúndio acrescente agora o transgênico. O latifúndio pós-petróleo. O latifúndio nacionalmente desterritorializado da globalização neoliberal. Internamente, o processo responsável pela industrialização deixou desempregada uma parte considerável da mão-de-obra rural e urbana.
Nossa questão nacional coincide historicamente com a luta interimperialista entre Reino Unido e EUA. Depois da revolução liberal de 30, gravitamos em torno dos EUA, e não mais do Reino Unido. A nós foi dado o desafio de fazer uma revolução democrático-burguesa no momento em que se consolidou o capitalismo monopolista, juntamente com a substituição da burguesia inglesa pela norte-americana.
Continuamos certamente periféricos, mas uma periferia que mudou significativamente com essa troca de hegemonia, segundo Ignácio Rangel, para quem em 1822, com a independência, também aconteceu alguma coisa diferente, na sociedade brasileira, com a hegemonia inglesa.
Portugal, para nós, foi uma potência colonizadora, enquanto o Reino Unido e os EUA são potências imperialistas. A realidade objetiva é que temos sido esse condicionante exterior. O poder do capital estrangeiro é a base da dominação e constitui a essência de nossa problemática nacional, levando em conta que o inglês promoveu aqui o capitalismo mercantil e obstaculizou o desenvolvimento industrial, ao passo que o capitalismo, em sua etapa financeira norte-americana, deu força para a expansão industrial no Brasil -no sentido da transferência de indústrias de lá para cá.
O capitalismo industrial no Brasil cresceu sob a égide do capital financeiro norte-americano a partir da Segunda Guerra Mundial.

Resignação colonizada
O que é problemático nos escritos de Rangel são as suas abordagens sobre tecnologia e energia. Quanto à primeira, avulta neles certa resignação colonizada diante dos pacotes tecnológicos externos, seguindo as diretrizes da Cepal, o que nesse aspecto dista do enfoque de outro isebiano como Álvaro Vieira Pinto, também marxista, mas cuja compreensão do fenômeno tecnológico era muito mais aguda e profunda.
No que tange à energia, Rangel não conseguiu ir além do horizonte do hidrocarboneto, com um juízo equivocado sobre a biomassa e os óleos vegetais. A verdade é que o marxismo de Rangel não descobriu o sol dos trópicos. Faltou-lhe a leitura do marxista Oswald de Andrade, que foi seu contemporâneo a sublinhar, na marcha da utopia, o caminho do Brasil rumo ao sol.

Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora e autor de "A Salvação da Lavoura" (Casa Amarela).

Obras Reunidas
Vol. 1 (744 págs., R$ 60)
Vol. 2 (764 págs., R$ 60)
de Ignácio Rangel. Ed. Contraponto (av. Franklin Roosevelt, 23, sala 1.405, CEP 20021-120, RJ, tel. 0/xx/21/2544-0206).



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