São Paulo, domingo, 30 de outubro de 2005

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+ arte

Bob Wilson fala de sua montagem futurista da "Tetralogia do Anel", de Wagner

Uma ópera galáctica

ERIC DAHAN

Poucas horas antes de mostrar sua "Valquíria", no teatro do Châtelet, em Paris, o diretor norte-americano, revelado na França em 1970 com o magnífico "Olhar do Surdo", aclamado por seu "Einstein on the Beach" ou o "Orlando" que montou com Isabelle Huppert, explica sua relação com Richard Wagner (1813-83) e também sua montagem de "Anel dos Nibelungos" -composto de "O Ouro do Reno", "A Valquíria", "Siegfried" e "O Crepúsculo dos Deuses".
 

Pergunta - Seu "Anel" começa de maneira muito prosaica, quase como uma "space opera"...
Bob Wilson -
Eu tentei sair da mitologia alemã. Baudelaire, quando viu "Tannhäuser" em Paris, em 1856, escreveu que havia vivido uma experiência inédita de tempo, de espaço e de luz. Vejo aí a confirmação de minha abordagem do "Anel", tão fiel ao ideal wagneriano quanto a "Guerra nas Estrelas". É como olhar através da escotilha de uma nave espacial, esquecer todo o espaço do mundo, deixar-se envolver por essa música que imprime seu tempo e espaço próprios.
As encenações tendem a saturar o espaço de movimentos, e eu tento reduzi-los. Muitas vezes me sinto incomodado pelo caráter ilustrativo e redundante de uma tradição que faz Brünehilde atuar com histeria e agitação, escondendo imediatamente o poder de seu canto de gelo e fogo.
Wagner era sem dúvida uma espécie de Cecil B. De Mille [1881-1959, diretor de "Os Dez Mandamentos"], mas exigia que sua música fosse tratada com nobreza. É um sentimento que também me domina quando escuto o "Anel".

Pergunta - O senhor não faz uma leitura muito política do "Anel". Ele tem um verdadeiro significado para o sr.?
Wilson -
Podemos dizer que "O Ouro do Reno" é uma história de dinheiro e de concupiscência, de capitalismo, de revolução industrial. Mas também podemos esquecer tudo isso, que é apenas um aspecto das coisas, e escutar nele mil outras. Recusar a ancoragem histórica é abastecer a ópera e suas histórias de tempo, tanto o de um ritual de 2.000 anos quanto o de um drama do futuro galáctico.
Para traduzir isso com os cantores, é preciso criar um estado de tensão e de escuta total. Em Wagner há momentos de silêncio e de calma. Ezra Pound [1885-1972] disse: "A quarta dimensão é imobilidade e poder sobre a fera selvagem".
Quando montei "A Doença da Morte", de Marguerite Duras, há alguns anos, num fim de tarde, depois dos últimos ensaios, fui ao zoológico. Ele estava quase fechando, mas durante alguns minutos pude ver um grupo de lobos cinza-azulados, imóveis sobre uma rocha. Eles não olhavam na minha direção, mas eu senti que estavam conscientes de minha presença e escutavam esse silêncio com um ouvido. Foi muito impressionante, uma experiência de escuta total.
Quando vou à ópera, muitas vezes tenho a impressão de que ninguém se escuta no palco -e de repente não ouço nada. A não ser que eu feche os olhos. Os espectadores deveriam fechar os olhos diante de minha encenação!

Pergunta - Todos os seus espetáculos, mesmo os não-líricos, se baseiam na ópera como "obra de arte total", segundo Wagner. O que acontece quando aborda o "Anel", "obra de arte total" por excelência?
Wilson -
Vejo aí uma oportunidade de trabalhar com a luz, pois sem luz não há espaço. A luz é o elemento-chave para escutar e ver. A religião e a política dividem e reduzem a visão. Quando montei "Parsifal", tentei suprimir qualquer referência ao cristianismo enquanto imitação de um Santo Graal à moda de Las Vegas.
Na época em que compôs "Parsifal", Wagner se interessava muito pelo budismo; portanto, montar o "Anel" como um conto alemão é reduzir sua universalidade.

Pergunta - Por que essa desconfiança do político?
Wilson -
Quando comecei, algumas vezes exprimi minha consciência social e política em espetáculos como "A Letter for Queen Victoria" [Uma Carta para a Rainha Victoria]. Coloquei em cena Christopher Knowles, um rapaz negro que havia passado 18 anos de sua vida encerrado no autismo. Mas, em vez de tirar partido dramático de sua história, como fez o filme "Rain Man", eu quis travar um diálogo com ele.

Pergunta - Um diálogo feito de gesticulações e de gritos...
Wilson -
Todos os meus espetáculos são diferentes, embora as pessoas nem sempre vejam isso. Não utilizo as mesmas combinações de espaços e cores em "Time Rocker", com Lou Reed, no "Conto de Inverno", de Shakespeare, e no "Anel".
Em cada uma das vezes, eu primeiro elimino qualquer referência anterior. Para o "Anel", busquei a paleta justa, tentei traçar uma linha contínua durante 16 horas e fazer esquecer -apenas com a luz- que ele foi composto no século 19. Para mim, o "Anel" é principalmente o futuro.


Esta entrevista foi publicada no "Libération".
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.


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