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São Paulo, domingo, 30 de novembro de 2003

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De índole polêmica e linguagem forte, Edward Said, morto em setembro, foi um dos grandes críticos da condição colonial

O humanista de vida dupla

Peter Burke

Edward Said [1935-2003], que morreu em 25 de setembro após uma longa enfermidade, levou uma vida dupla. Foi crítico literário e foi também uma das vozes mais eloquentes e apaixonadas em defesa da independência da Palestina. Nos dois casos, poderia ser definido como um "humanista", para usar um de seus termos prediletos. Foi um humanista em política, pois estava pronto a condenar a violência cometida pelo seu próprio lado bem como pelos seus oponentes. Foi um humanista na universidade, no sentido de ter grande apreço por filologia, como seus heróis Giambattista Vico e Erich Auerbach, bem como por definir sua matéria de estudo, a literatura comparada (sobretudo as literaturas inglesa, francesa e árabe), num sentido muito amplo do termo "literário". Said estava apto a escrever sobre arte e especialmente sobre música, uma paixão de toda sua vida, bem como sobre textos (inclusive relatos de viagem e textos de história, além de romances). A exemplo de outro de seus heróis, Antonio Gramsci, empenhou-se em situar as obras de arte num contexto cultural, social e político. A maior parte de sua obra foi polêmica ao extremo. Em literatura assim como em política, Said sempre suscitava emoções fortes, na mesma medida em que as expressava. A seguir, vou me concentrar nas realizações de Edward Said como crítico cultural e, pode-se também acrescentar, historiador cultural. Sua reputação repousa sobre dois livros, "Orientalismo" (1978) e "Cultura e Imperialismo" (1993) [ambos lançados no Brasil pela Cia. das Letras], além de vários ensaios mais breves. Antes de 1978, era conhecido nas universidades norte-americanas como um crítico literário vigoroso, que havia estudado, em particular, a obra de Joseph Conrad. Após essa data, tornou-se conhecido em muitos países e em diversas áreas intelectuais, entre elas a história, a sociologia e a antropologia, além do seu alvo principal, os "estudos orientais". "Orientalismo" é um livro fascinante, exasperante, penetrante e equivocado, que parece se mover em várias direções ao mesmo tempo. É, do modo mais óbvio, uma defesa apaixonada da cultura do Oriente Médio contra os observadores estrangeiros, sobretudo britânicos, franceses, alemães e norte-americanos, que a trataram com superioridade e a consideraram através de uma névoa de estereótipos de luxo, languidez, passividade, crueldade e assim por diante. Sob esse aspecto, o livro ocupa seu lugar como um exemplo particularmente bem escrito de uma série de estudos redigidos com o intuito de convencer os ocidentais a levar mais a sério outras culturas.

Exposição vaga
No entanto "Orientalismo" é intelectualmente mais ambicioso do que isso. É também uma tentativa de escrever a história de um tipo de instituição ou, pelo menos, de uma "formação discursiva" (na linguagem de Michel Foucault, outro dos heróis de Said, pelo menos naquela época). Essa instituição, sugere Said, foi criada pelos poderes coloniais a fim de dominar a região, a partir da ocupação do Egito por Napoleão. Essa é a parte mais original no livro, mas também a mais falha. A formação literária de Said não lhe deu o aparato necessário para escrever a história de uma instituição, e sua exposição do assunto é demasiado vaga. Passa do extremamente geral para o extremamente particular e tende a deixar de lado a faixa intermediária. Em certo momento, reflete sobre os elos entre o conhecimento e o poder e, no momento seguinte, comenta passagens específicas de textos, observando, por exemplo, a "má-fé" demonstrada por um orientalista americano, Bernard Lewis. Said parece compelido a direções diferentes. É atraído pelo modelo de Foucault, de um discurso sem autor, mas ao mesmo tempo permanece muito mais interessado do que Foucault em escritores individuais. É atraído pela idéia de que o "Oriente" é pura invenção ou representação, mas também deseja dizer que o Oriente Médio foi representado de modo enganoso pelo Ocidente. Em resumo, um livro atulhado de críticas dirigidas aos outros é também, ele mesmo, extremamente vulnerável a críticas. O que foi e permanece impressionante em "Orientalismo" é o uso que faz Said de técnicas próprias de um crítico literário para investigar textos redigidos por estudiosos como Hamilton Gibb ou Louis Massignon e por políticos como Lorde Cromer ou Henry Kissinger bem como por escritores como Gérard de Nerval e Gustave Flaubert. A medida do êxito de Edward Said pode ser avaliada no fato de que, se em 1970 era quase impensável associar dessa maneira literatura e saber a política, hoje é igualmente impensável debater intelectuais e escritores sem situá-los num contexto político. O livro foi também oportuno, pegando o embalo das ondas do pós-colonialismo e do pós-estruturalismo e solapando a oposição binária simples entre Oriente e Ocidente. Produziu um grande impacto quando foi publicado e continua a despertar interesse (foi traduzido para o chinês, recentemente). Os desejos opostos de confirmar e refutar suas conclusões forneceram combustível para muitas pesquisas. "Orientalismo" tinha uma larga abrangência, mas "Cultura e Imperialismo" é ainda mais ambicioso, ao menos geograficamente, pois inclui a África e as Américas. Concentra-se em romances, mas inclui um capítulo deslumbrante sobre a ópera "Aída", de Verdi, composta para o novo teatro de ópera do Cairo, por um pedido especial do quediva Ismail. O livro está repleto de surpresas. Encontrar um capítulo sobre Jane Austen num livro dedicado ao imperialismo foi um tremendo choque, e devo confessar que a argumentação de Said, conquanto engenhosa, ainda não me convenceu de que a chave do romance "Mansfield Park", de Jane Austen, é a plantação caribenha que o senhor da família possuía. O dinheiro proveniente do açúcar podia ser decisivo para as finanças de alguns cavalheiros ingleses, mas Antígua permanece marginal ao romance. Em contraste, um capítulo sobre o romance "Kim", de Rudyard Kipling, a história de um órfão britânico na Índia imperial, era apenas previsível. A surpresa dessa vez está em descobrir que Said estimava e admirava esse escritor declaradamente imperialista. Said tinha uma notável habilidade para provocar polêmica.

Debate agressivo
Até a sua autobiografia, "Out of Place" [Fora do Lugar, 1999, Vintage Books], suscitou uma intervenção da própria irmã, que o acusou de apresentar uma imagem deturpada do pai. "Cultura e Imperialismo" deu ensejo a um debate, cada vez mais agressivo, com um resenhador, o filósofo e antropólogo Ernest Gellner, no qual Said afirmou que Gellner, que escrevera sobre o Marrocos, não entendia a língua árabe, ao passo que Gellner retrucou que Said não conseguia reconhecer uma ironia.
A força de Said era seguramente a de um ensaísta. No caso de "Orientalismo" e de "Cultura e Imperialismo", certos capítulos se destacam do conjunto. Alguns dos 46 ensaios escritos ao longo de mais de três décadas e coligidos em "Reflexões sobre o Exílio e Outros Ensaios" [Cia. das Letras] mostram o autor no melhor do seu talento. O espectro é vasto: Vico, ficção árabe, Chopin, Nietzsche, a dançarina do ventre egípcia Tahia Carioca -como foi ela ganhar tal nome?-, Eric Hobsbawm, Michel Foucault, Samuel Huntington.
Existe autobiografia bastante para atrair o leitor para os ensaios, mas não tanto que dê margem à autocomplacência. Um dos ensaios mais argutos, "Pelos Olhos de Gringo", discute a imagem da América do Sul no romance "Nostromo", de Conrad. Era um dos escritores sobre os quais Said mais tinha a dizer e também um dos escritores que mais tinha a dizer a ele, em vista da experiência comum a ambos, de uma vida no exílio e "entre mundos". A análise sutil do homem que foi "ao mesmo tempo imperialista e antiimperialista" é uma clara advertência de que Said, a despeito de sua linguagem forte e de sua apaixonada índole polêmica, foi um crítico bastante ciente dos paradoxos e das ambiguidades da condição humana. Também nesse sentido foi um humanista.


Peter Burke é historiador inglês, autor de "Uma História Social do Conhecimento" (Jorge Zahar). Escreve regularmente na seção "Autores".
Tradução de Rubens Figueiredo.


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