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São Paulo, domingo, 30 de novembro de 2003

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Retórica do excesso de Augusto Roa Bastos enobreceu o gênero de romances sobre ditadores latino-americanos

Catedral e casinhas de fim de semana

Juan José Saer

No dia 6 de novembro, o governo argentino outorgou a Augusto Roa Bastos a Ordem de Maio, a mais alta condecoração que o país concede a um cidadão estrangeiro. Tendo fugido do Paraguai e da ditadura de [Alfredo] Stroessner [1954-89], em circunstâncias romanescas, Roa Bastos viveu e trabalhou muitos anos em Buenos Aires, onde escreveu a parte mais importante de sua obra literária, especialmente "Hijo de Hombre" (1960) e "Eu, o Supremo" [ed. Paz e Terra], que, depois de mais de uma década de trabalho, viria a publicar em 1974, com merecida repercussão internacional. A exemplo do que aconteceu com muitos outros intelectuais e escritores latino-americanos -Rubén Darío, Pedro Henríquez Ureña, Alfonso Reyes, Juan Carlos Onetti, Pablo Neruda etc.-, a Argentina e sobretudo a cidade de Buenos Aires permitiram a Roa Bastos elaborar boa parte de sua obra literária. No seu caso, em particular, até poderíamos dizer que o melhor dela, apesar das mil vicissitudes públicas e privadas desses anos turbulentos. Para os escritores da minha geração, especialmente os narradores, Roa Bastos foi o principal interlocutor nos anos 60. Apesar da diferença de idade, nós nos reconhecíamos em suas idéias literárias e em sua postura ética e política. Roa Bastos entrou em contato conosco e ajudou a promover nossos primeiros livros. Prefaciou Daniel Moyano quando ninguém o conhecia, e sempre podíamos contar com ele em nossas intervenções públicas, nossas revistas (como "El Escarabajo de Oro", depois chamada "El Grillo de Papel", dirigida por Abelardo Castillo e Liliana Heker, ou a mais volumosa, embora fugaz, "Literatura y Sociedad", dirigida por Ricardo Piglia), em nossos debates, lançamentos de livros e aventuras editoriais. No meu caso pessoal, Roa Bastos tentou sem êxito conseguir a publicação de alguns dos meus primeiros livros, e acho que, para ilustrar sua insólita generosidade, vale a pena contar como nos conhecemos. Eu tinha publicado meu primeiro livro por uma editora de Santa Fé, em 1960, e poucos meses depois recebi o telefonema de uma pessoa que estava de passagem pela cidade e tinha um recado para mim, do escritor paraguaio Augusto Roa Bastos. Roa Bastos me mandava um exemplar autografado de "Hijo de Hombre", que acabara de ganhar o Prêmio Losada, então o mais importante para a literatura latino-americana, e me pedia, na dedicatória, que lhe mandasse um exemplar do meu livro de contos. Nossa ininterrupta amizade data dessa época.

Rito de passagem
Em sua obra literária, copiosamente reeditada, traduzida, premiada, comentada, se destacam os contos de "El Trueno entre las Hojas", o "romance em forma de contos" (a expressão é de Antonio di Benedetto) "Hijo de Hombre" e a suma narrativa que constitui "Eu, o Supremo", singular incursão no gênero chamado de "ditador latino-americano", que, embora possa ter seu mais antigo precursor no "Facundo" de Sarmiento, foi oficialmente inaugurado por Valle-Inclán e resgatado por Miguel Ángel Asturias. Com o passar dos anos, o gênero se transformaria no rito de passagem, para não dizer na rima obrigatória, que parece conferir patente de latino-americanos a muitos narradores do continente. Fazendo em pedaços a rígida estrutura do clichê, incapaz de se contentar com a mera supressão dos sinais de pontuação para parecer moderno, Roa Bastos teve a inteligência de introduzir no livro a problemática literária rigorosamente contemporânea do momento em que o escrevia. O que em outros livros é tema local em "Eu, o Supremo" se transforma em universalidade detectada num determinado lugar e num momento único, o Paraguai do século 19 e a ditadura de Gaspar Francia, que irradiam sentido em infinitas direções -históricas, geográficas, literárias, espaço-temporais. Como todos os grandes romances do século 20, o livro de Roa Bastos não se esgota na exposição de seu tema, que é literalmente um "pré-texto", ou seja, um núcleo anterior ao texto que o trabalho de escritura desmonta, modula, dispersa no texto até encontrar sua forma única, válida apenas para essa narrativa e para nenhuma outra, acima do gênero, da tradição, dos dogmas ideológicos ou comerciais que pretendem erigir as convenções e as conveniências da época em regra intocável.

Maquinaria inclusivista
Poderíamos dizer que o principal traço de "Eu, o Supremo" é o excesso, atributo que só em aparência e em nome dessas regras que pretendem se identificar com o clássico pode ser considerado negativo. A demasia temática e um tanto folclórica do gênero "ditador latino-americano", até dos romances que tratam de ditadores "modernos", e que às vezes lhe dá um gosto desagradável de literatura de exportação, se transforma na obra de Roa Bastos em excesso formal, maquinaria inclusivista que, como a monstruosa Escila, devora tudo o que encontra no caminho.
Esse inclusivismo também lhe permite incorporar muitas contradições, que alguns consideram inconciliáveis: é um romance ao mesmo tempo trágico e cômico, realista, mas também fantástico. Como nele se misturam sem complexos o passado histórico e o presente da escritura, fazendo do anacronismo um instrumento formal, poderíamos dizer sem medo de errar que, assim como o sonho para Freud, tal como o descreve em ""Gradiva" de Jensen", o romance do Supremo se constrói com um pé fincado no passado e o outro no chão igualmente fértil da véspera.
Os detratores de "Eu, o Supremo" costumam desqualificar o livro alegando sua essência contraditória e proliferativa, mas é evidente que esses pretensos erros de construção constituem seus elementos mais radicalmente renovadores. A prudência é a menos relevante das preocupações de muitos dos grandes narradores modernos. Melville, Dostoiévski, Flaubert, mas também Proust, Joyce, Faulkner, Gadda, Broch (a cujos contos já foi comparado o romance de Roa Bastos) foram criticados e até desdenhosamente ignorados por causa da ambição de seus projetos, que iam de encontro aos preconceitos da crítica.
Quando, em agosto de 1954, apareceu "Uma Fábula", o romance a que Faulkner dedicara anos de trabalho, os críticos de Nova York -que, apesar de sua projeção mundial, nunca prestigiavam o escritor- saltaram como feras para atacá-lo e o destroçar, por considerá-lo desproporcionado e caótico. Somente Malcolm Cowley, que, em 1942, resgatara toda a obra de Faulkner do semi-esquecimento, escreveu que "Uma Fábula" podia ser imperfeita e inacabada, como diziam seus críticos, mas que ainda assim se elevava como uma imensa catedral acima dos outros livros do ano, que ao lado dele pareciam casinhas de fim de semana, apenas corretamente construídas.
A imagem pode ser aplicada a "Eu, O Supremo", em comparação com boa parte da literatura contemporânea em língua castelhana.


Juan José Saer é escritor e ensaísta argentino, autor de, entre outros, "O Enteado" (ed. Iluminuras) e "Ninguém Nada Nunca" (Cia. das Letras). Escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Sergio Molina.


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