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São Paulo, domingo, 30 de novembro de 2003

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EM "CRÍTICA E PROFECIA", LUIZ FELIPE PONDÉ DEFENDE QUE APENAS A FILOSOFIA DA RELIGIÃO PERMITE COMPREENDER INTEGRALMENTE A OBRA DE DOSTOIÉVSKI

DEUS E NADA MAIS

Divulgação
Cena de "O Idiota" (1951), filme de Akira Kurosawa baseado no romance de Dostoiévski (1821-81)


Boris Schnaiderman
especial para a Folha

O livro de Luiz Felipe Pondé, "Crítica e Profecia - A Filosofia da Religião em Dostoiévski", desenvolve-se com muito conhecimento e empenho, como uma explicitação e desdobramento deste título. O autor é professor do curso de pós-graduação em ciências da religião do departamento de teologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e em nenhuma passagem do livro ele se desvia dessa condição de estudioso da filosofia e da ciência da religião; ao mesmo tempo, não se percebe nas quase 300 páginas do volume nenhum laivo de proselitismo religioso. Mais ainda, na defesa de suas concepções sobre o tema, ele cita extensamente estudos de teólogos judeus, protestantes e grego-ortodoxos, havendo também referências a um teólogo muçulmano.

Miopia hermenêutica
Mas, se há no texto essa largueza de visão, esse espírito realmente ecumênico, o mesmo não se pode dizer de sua posição em relação a nós outros, incréus e agnósticos. Se na página 28 ele chega a dizer que a possibilidade de dialogar com a inteligência não-religiosa "é fundamental para evitar a "guetização" do pensamento teológico", nas demais páginas há uma insistência, às vezes excessiva, na tese de que é simplesmente ridículo um humanismo que não se baseie na religião e no sobrenatural. O seu ponto de vista fica mais explicitado numa passagem da pág. 30: "Entender Dostoiévski como mero objeto de uma crítica literária de base psicológica ou sociológica (ou mesmo unicamente literária) implica miopia hermenêutica: sem religião não há compreensão de sua obra: só o analfabeto dogmático em filosofia da religião pode esperar compreendê-la sem o socorro do pensamento religioso". Depois dessa verdadeira chicotada, um agnóstico fascinado pela obra de Dostoiévski, como é o meu caso, deveria talvez abandonar simplesmente o convívio com este livro, que nos exclui de modo tão categórico e sem apelação. Mas semelhante convívio é proveitoso demais para que o façamos. O conhecimento que o autor tem da obra do escritor, a riqueza dos elementos com que lida é tal que não se pode deixá-lo de lado, mesmo que as nossas premissas sejam de todo diferentes. O fato de considerar Dostoiévski essencialmente um ficcionista, a exemplo do que faz Leonid Grossman no estudo que traduzi para o português ("Dostoiévski Artista", ed. Civilização Brasileira, 1967), não elimina o fato de eu ver nele um romancista-filósofo, importante para o entrechoque de idéias em nossa época. Deixemos, pois, de lado o fato de que para o autor, e para o próprio Dostoiévski, não possa haver ética verdadeira sem religião, enquanto nós outros temos a firme convicção de que nossa descrença no sobrenatural pode aliar-se a uma postura ética muito rigorosa. É bem oportuna, no livro, a confrontação entre as idéias básicas de "Crime e Castigo" e os grandes dilemas do mundo de hoje: a clonagem humana, a obediência ou não às determinações do Estado etc. Concordando ou não com Pondé, somos levados a refletir sobre esses temas e a pensar em como eles aparecem à luz das concepções dostoievskianas.

Formulações felizes
A preocupação em procurar conferir o pensamento do tempo de Dostoiévski com a nossa época o leva, por exemplo, a afirmar que certas idéias discutidas na Rússia nos anos de 1860 e 70 seriam consideradas como "novidade" em nossos dias.
Algumas formulações no livro me parecem extremamente felizes. É o caso do que lemos na pág. 113: "Memórias do Subsolo" (...) é uma verdadeira descida ao inferno; com efeito, a imagem do subsolo é uma metáfora do inferno". E, na página seguinte, temos a definição do personagem dessa novela como "desgraça inteligente que fala". Veja-se também a seguinte caracterização do Príncipe Michkin, de "O Idiota": "Em momento algum conseguimos dizer precisamente o que ele é. O autor consegue a proeza de construir um personagem que tem a característica de ser misterioso não porque fale ou não consigamos ouvi-lo, mas porque, de fato, não parece seguir nenhuma lógica conhecida; está o tempo todo fora de todas as lógicas" etc. Outra afirmação muito boa: "Dostoiévski consegue descrever melhor, na sua obra, o agoniado do que o místico". Tenho, porém, mais divergências em relação ao livro. Embora leiamos na pág. 127 que houve rejeição de seu pensamento pelos acadêmicos de esquerda do Ocidente, por causa de "seu reacionarismo religioso anacrônico", predomina no livro a negação do caráter conservador e reacionário de Dostoiévski e, na pág. 130, a autor chega a escrever: "(...) Interpretá-lo como um reacionário é cometer um erro histórico". Trata-se realmente de uma questão complexa. Dostoiévski tinha um amor entranhado pelo povo russo, aliado a uma desconfiança profunda em relação a tudo o que vinha do Ocidente. Ele apoiou plenamente as reformas introduzidas por Alexandre 2º, sobretudo a libertação dos camponeses da servidão, em 1861, e toda a sua obra se caracteriza por um profundo anticapitalismo. Mas, ao mesmo tempo, achava que a submissão ao czar era absolutamente indispensável e via uma união íntima entre o povo e a religião grego-ortodoxa. No entanto estava imbuído de preconceitos raciais e nacionalistas.


Dostoiévski estava imbuído de preconceitos raciais e nacionalistas


Anti-semitismo
Nesse sentido, convém atentar mais uma vez num trecho que serve de epígrafe a este livro: "Ame toda a criação de Deus, ela inteira e cada grão de areia nela. Ame cada folha, cada raio da luz de Deus. Se amar tudo, perceberá o mistério divino nas coisas". Em suma, temos aí a mais alta espiritualidade. Mas vejamos como textos deste teor são comentados por Leonid Tsípkin (com referência ao feroz anti-semitismo de Dostoiévski) no romance "Verão em Baden-Baden" [leia resenha do livro na pág. 12], cuja tradução -de Fátima Bianchi- acaba de sair pela Companhia das Letras: "(...) E me pareceu estranho ao ponto do impensável que um homem tão sensível aos sofrimentos humanos em seus romances, tão cioso defensor dos humilhados e ofendidos, que pregava ardorosamente, e até quase freneticamente, o direito à existência de cada criatura terrestre e que cantava hinos de exaltação a cada folhinha e a cada talo de planta, que esse homem não tivesse encontrado uma única palavra em defesa ou em justificativa de um povo perseguido ao longo de milhares de anos" etc. Acrescente-se a isso que os escritos anti-semitas de Dostoiévski, onde se exaltava ao mesmo tempo o caráter tolerante do homem do povo na Rússia, precederam de bem poucos anos os terríveis pogroms do reinado de Alexandre 3º. Mas esse espírito intolerante se manifestava em relação a outros povos também, sobretudo os poloneses. Veja-se como eles são representados em diversas obras, inclusive em reminiscências. Isso quando a Polônia estava exaurida pela cruel repressão da revolta de 1863. Lembre-se também, no "Diário de um Escritor", a crítica áspera que ele faz à filha do grande pensador político A.I. Herzen, que acabava de se suicidar, e que ele contrapõe ao suicídio de uma jovem pobre; esta se atirara de uma janela, agarrada a um pequeno ícone. Esse último episódio lhe inspiraria também o conto "Uma Doce Criatura" (há outras traduções brasileiras desse título), certamente, ao lado de "Bobók", o ápice de sua realização como contista. Bem, onde fica, nesse caso, a mansidão cristã que o romancista exaltava? Outra divergência que tenho com o livro é a parte dedicada à leitura de Dostoiévski por Bakhtin. Embora Luiz Felipe atribua a esta uma importância fundamental, o pensador russo teria feito, segundo ele, uma leitura marxista, o que não está certo, dada a complexa relação de Bakhtin com o marxismo. Em "Problemas da Poética de Dostoiévski" há uns toques de aproximação marxista, mas, em conjunto, essa obra é essencialmente uma abordagem com base na poética, de acordo com o título e uma declaração explícita do teórico, logo no começo do livro. Ademais, lembre-se a verdadeira catilinária contra o materialismo histórico que há em seu inacabado "Para a Filosofia do Ato", enquanto em outros textos adota posição francamente marxista. Embora Pondé cometa esse equívoco, ele revela intuição muito boa, quando afirma em nota que, na base dos teólogos russos, deve-se pressupor em Bakhtin ligação com "uma tradição teológica ortodoxa "cachée'". Essa ligação está plenamente confirmada hoje em dia, inclusive com textos que tinham sido mutilados e com declarações do próprio teórico em fitas gravadas.

O linguista Bakhtin
Também soa estranha a definição de Bakhtin como linguista (igualmente Northrop Frye), quando se constata pelos seus textos que ele estava às turras com a linguística de seu tempo e defendia a adoção da "metalinguística", que deveria não se ater ao período gramatical e dedicar-se ao estudo dos enunciados.
Há outras afirmações discutíveis do autor, como, por exemplo: tratando da origem da teologia russa, ele afirma que, até o século 19, "a Igreja russa teria vivido de traduções do grego e do latim".
Nesta obra tão rica de informações sobre a teologia grego-ortodoxa, a maior lacuna, na minha opinião, é a falta de uma referência sequer a Vladímir Solovióv, o grande pensador religioso que foi amigo muito próximo de Dostoiévski nos últimos anos deste, a ponto de viajarem juntos para a região de Óptino, onde tiveram contato com os "stártzi", os monges venerados pelo povo como santos e que teriam papel importante em "Os Irmãos Karamazov".
Solovióv tinha então cerca de 25 anos e, Dostoiévski, perto de 60, o que não os impediu de se influenciarem mutuamente, a ponto de muitos textos dos últimos anos do romancista serem impensáveis sem a proximidade do amigo, que teve, todavia, uma postura bem menos conservadora.
Quanto ao livro que estamos comentando, seria injustiça deixar de referir o fato de se tratar de anotações de aula, cuja organização coube a Lílian Wurzha Ioshimoto, então aluna do autor, o que explica certas repetições e, às vezes, algumas formulações contraditórias. Mas, a par dessa circunstância, é preciso assinalar que ele avança, com muita garra, no desenvolvimento de um núcleo de idéias articuladas com precisão.

Boris Schnaiderman é crítico e tradutor, autor de, entre outros, "A Poética de Maiakóvski" (ed. Perspectiva) e "Os Escombros e o Mito - A Cultura e o Fim da União Soviética" (Cia. das Letras).

Crítica e Profecia
288 págs., R$ 32
de Luiz Felipe Pondé. Ed. 34 (r. Hungria, 592, CEP 01455-000, SP, tel. 0/xx/11/3816-6777).


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