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São Paulo, domingo, 30 de novembro de 2003

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"Verão em Baden-Baden" ficcionaliza a vida de Dostoiévski, que passou uma temporada na cidade alemã em 1867

Linhas de montagem

Rubens Figueiredo
especial para a Folha

O judeu russo Leonid Tsípkin (1926-82) foi um patologista que, de dia, trabalhava no Instituto de Poliomielite e Encefalite Viral de Moscou e, à noite e nos finais de semana, se fechava em seu escritório para, a princípio, compor poemas e, mais tarde, prosa de ficção. Essa duplicidade, a que se soma o caráter de um segredo noturno que a escrita de Tsípkin adquiriu, não é estranha à rica literatura produzida fora da esfera oficial nos tempos da União Soviética. Faz mesmo parte da força dessa literatura. Mas "Verão em Baden-Baden" ressalta por projetar essa duplicidade além dos limites históricos do período soviético. O título do romance refere-se à temporada que Dostoiévski passou naquela cidade alemã em companhia de sua segunda mulher, Ana Gregórievna, em 1867. Esse período é a matéria principal do romance. Lá está, com toda sua força, o escritor obcecado pelo jogo, que perde tudo, penhora até os agasalhos da mulher, volta do cassino e lhe pede perdão de joelhos, para logo depois retornar à roleta. Porém, por mais vivo que seja o retrato criado por Tsípkin, por mais pungentes que sejam as aflições em cena e por mais verídicas as situações narradas, notamos aos poucos que tudo isso constitui na verdade o cenário de um outro drama. A rigor, o drama do próprio romance que lemos, do qual Tsípkin em pessoa participa ativamente. Pois, às circunstâncias da biografia de Dostoiévski, "Verão em Baden-Baden" entremeia o relato de uma viagem real do próprio Tsípkin, de Moscou a Leningrado. Nessa cidade, outrora e hoje chamada São Petersburgo, pretende visitar locais ligados à vida e à obra de Dostoiévski. No primeiro parágrafo, Tsípkin lê no trem o diário da mulher do romancista. E parte do efeito impressionante decorre, nessas primeiras páginas, da sintonia entre o deslocamento acelerado do trem e a mobilidade da narrativa, que alterna e funde continuamente os tempos de seus dois protagonistas. O mesmo efeito se torna ainda mais concreto por não haver divisão em capítulos, não existirem quase parágrafos e as frases terem um fôlego que adia, por várias páginas, o ponto final.

Ondulações das frases
Entrecortada por travessões e por bruscos deslocamentos de foco e de tom, a frase de Tsípkin, longe de um mero virtuosismo de estilo, cumpre a função de abolir as marcas de tempo e de espaço convencionais em romances. A rigor, ela está no cerne da arte da ficção de Tsípkin. Pois todo o material do romance é estritamente verídico: biográfico para Dostoiévski e autobiográfico para Tsípkin. O ficcional, o literário, resulta da montagem de ambos os materiais e do sentido que emerge do choque e da fusão entre eles, nas longas ondulações das frases.
Mas há, no romance, um núcleo de tensão que Tsípkin, em geral, silencia e só deixa soar em momentos-chave. Trata-se do anti-semitismo encarniçado de Dostoiévski e do fervor dos judeus russos pela obra do romancista. Tsípkin -ele mesmo um desses fervorosos- enfrenta a questão e arrisca hipóteses brilhantes para entender as duas coisas: nada que seja lisonjeiro para nenhuma das partes. A força amorosa com que Tsípkin personifica Dostoiévski, até a sua morte, e a naturalidade com que volta a ser ele mesmo, em quadros fascinantes da Leningrado soviética, não anulam o conflito. Antes o sublinham, como uma contínua tensão subjacente.
Escrito em segredo entre 1977 e 1980, publicado discretamente na Alemanha e na Inglaterra, a genialidade de "Verão em Baden-Baden" só foi reconhecida quando Susan Sontag encontrou um exemplar num sebo. Tsípkin morreu sete dias depois de seu livro ser publicado numa revista de emigrados russos nos Estados Unidos: jamais viu qualquer obra sua impressa.


Rubens Figueiredo é escritor e tradutor. É autor de, entre outros livros, "Barco a Seco" e "As Palavras Secretas" (Companhia das Letras).

Verão em Baden-Baden
210 págs., R$ 32
de Leonid Tsípkin. Tradução de Fátima Bianchi. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, São Paulo, SP, tel. 0/xx/ 11/ 3707-3500).


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