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São Paulo, domingo, 30 de novembro de 2003

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Augusto de Campos lança "Invenção", que reúne traduções de obras de poetas provençais, de Dante Alighieri e outros, e "Não", sua terceira antologia, que traz produções da própria lavra

O percurso digital da dissonância concreta

Marcos Siscar
especial para a Folha

Apesar do recolhimento sugerido por títulos de poemas como "Morituro" ou "Fim de Jogo", as novas publicações de Augusto de Campos, 72, testemunham sua presença atuante no cenário poético brasileiro. O autor lançou simultaneamente dois livros de poesia. "Invenção" traz estudos e poemas traduzidos dos provençais Arnaut Daniel e Raimbaut d'Aurenga e dos italianos Dante Alighieri e Guido Cavalcanti. O livro retoma "Mais Provençais" (1982 e 1985), revisto, e acrescenta as traduções de cantos de Dante e poemas de Cavalcanti, propondo "seguir um rastro constelar na poesia dos séculos 12 a 14". Já o livro "Não" é uma coletânea de textos de autoria do próprio poeta, que dá sequência às antologias anteriores "Viva Vaia" (poemas de 1949 a 1979) e "Despoesia" (poemas de 1979 a 1993). Reunindo textos produzidos até 2002, "Não" é o terceiro volume da obra impressa de Augusto de Campos. Ambos os livros trazem palavras-chave da obra e da atuação poética de Augusto de Campos. "Invenção", em sintonia com o "make it new" poundiano, é um dos pilares da visão de poesia e tradução dos concretos. "Não" é, por assim dizer, sua condição. A negação é o gesto de oposição necessário à proposição do novo. Mas o que significariam essas palavras, após o fim das grandes guerras dos manifestos, na época dos "guetos e guerrilhas da poesia"? Detenho-me aqui no novo livro de poemas: o que se recusa quando se diz "não"? O leitor não encontrará uma resposta conclusiva no prefácio (perdão, no "NÃOfácio": o neologismo joga com a idéia da "facilidade", em uma poesia que propõe uma "dureza de rochedo", "Desplacebo"). No entanto, apesar de preferir destacar o impacto minimalista da palavra, expressando sua simpatia pelos "títulos mínimos", Augusto de Campos também aponta para a semântica da negação, quando associa a "Não" títulos de obras anteriores, como "Expoemas", "Despoesia", "Poetamenos". Trata-se de títulos que destacam a negatividade constitutiva da poesia, do poema e do poeta. A negação sempre foi a base da dissonância buscada por Augusto de Campos em sua relação com a poética ou com a instituição "poesia". O "não" aparece emblematicamente no seu primeiro verso publicado (em "O Rei Menos o Reino", 1949-1951): "Onde a Angústia roendo um não de pedra (...)". "Não" tem ali um peso quase metafísico. Fundindo-se ao corpo físico, o não esfíngico se transforma em poema, simbolicamente. O deserto da consciência, de uma subjetividade sem solo, esconde um drama da soberania. Mas não demorou para que o "não" se tornasse uma ferramenta afirmativa de um desejo de mudança.


O livro quase já não suporta tecnicamente aquilo que ainda é chamado de "poema"


Quadrados branco e preto
Em "Poetamenos" (1953), a subtração é referida ao próprio poeta, e, sob o coro e as cores de várias vozes, a negatividade age em favor da transformação das formas e da instituição do novo. É como se o "não", dali para frente, procurasse se transformar ele próprio em poesia, estrutural e historicamente, rompendo com a identidade sintático-semântica mais básica da poesia: o verso. No poema que dá título ao livro, "Não", o fluxo daquilo que "ainda não é poesia" vai diminuindo dentro de um quadrado branco, este inserido em um quadrado preto bem maior. O silêncio vai se fazendo dentro da moldura ameaçadora que sufoca a poesia. Não é difícil associar essa dramatização visual com a idéia da poesia espremida nos seus "guetos", com o silêncio dos poetas no fundo de suas catacumbas ("Tour"). "Não" traz um julgamento sobre a poesia, ou melhor, sobre aquilo que sobra da procura indócil da poesia, martirizada pela tela preta da televisão ("tudo existe/ pra acabar em tv", dizia a triste revisão da frase de Mallarmé, em "Despoesia"). Se, por um lado, Augusto de Campos sempre fez do não uma forma de afirmação poética, a negação também designa para ele uma soberania que falta à poesia e ao poeta ("não posso voltar atrás/ não posso ir mais adiante", pode-se decifrar no criptopoema "Sem Saída"). Em "Não", os poemas assumem-se como "não-poemas", segundo a conjunção dessas palavras na capa do livro. Poeta da solidão, da denegação de uma certa versão da "vida literária", Augusto de Campos circula "da contramão da vida ao beco sem saída" ("Desplacebo"). Essa dificuldade tocante que constitui a aventura poética do autor, desde seus primeiros poemas, transitando "do difícil ao impossível" ("Ad Marginem"), convive com uma outra, mais eufórica, quase profética, que se abre ao futuro ou se coloca nele ("do céu do/ futuro/ que não/ mente/ o poeta/ morituro/ te saúda", "Morituro"). De fato, sua poesia mantém, como poucas, um fértil intercâmbio com as diversas formas contemporâneas de tecnologia da comunicação (a publicidade, a "intermídia", o digital etc.). Dos poetas do concretismo, Augusto de Campos foi o que apostou mais decisivamente na via da experimentação com recursos técnicos ligados à visualidade, à sonorização, à espacialização. Em "Não", é surpreendente que essa preocupação venha reencontrar procedimentos do caligrama e da caligrafia, porém a contrapelo da simultaneidade perceptiva, resultando mais propriamente em um gesto criptogramático. O livro quase já não suporta tecnicamente aquilo que ainda é chamado de "poema": "O fato é que os poemas caberiam melhor talvez numa exposição, propostos como quadros, do que num livro", diz o autor na apresentação. Mas por que chamar de poesia aquilo que ficaria melhor em uma galeria de arte? Por que chamar "poema" o registro de um percurso digital? Por que o livro é uma "embalagem inelutável"?

Efeito de anacronismo
Tem-se a impressão de que, ao afirmar a indigência técnica do livro (transformando-o em catálogo, em mero "registro de percurso"), a poesia alavanca o seu performativo de futuro -aquilo que supostamente não caberia em um livro. Assim, algo como um efeito de anacronismo (o livro como sobrevivente do passado) parece necessário, por contraponto, para tornar eficiente o salto da poesia na direção do futuro. Tal efeito também seria adequado para descrever a importância da tradução de poesia na história da obra do poeta e do concretismo.
Apesar dos episódios polêmicos envolvendo a obra de Augusto de Campos, a excelência desse trabalho de tradução foi poucas vezes questionada. O verso traduzido tornou-se, por seu recorte da tradição e eficácia poética, uma voz fundamental no diálogo mantido pelos poetas concretistas com seu contemporâneo, resgatando o inventivo do passado ou projetando sobre ele a idéia presente da novidade (a do dizer como visualidade, por exemplo, em Dante: "Ah quanto a dir qual era è cosa dura"/ "Ah, como armar no ar uma figura").
Essa cumplicidade com o elemento da "crise" (o verso) parece renovar-se, hoje, em relação ao suporte poema. Augusto de Campos, "expoeta", apresenta seu livro como um alimento lançado aos guetos catacúmbicos da poesia. Mas talvez o livro (traço ou memória do desaparecimento) e o verbal (por meio do qual se nomeia a incompletude do sentido), supostos arcaísmos, permaneçam necessários para dar sentido e consistência à negação inventiva.

Marcos Siscar é poeta e professor de teoria da literatura na Universidade Estadual Paulista (Unesp). É autor de "Metade da Arte" (Cosac & Naify) e tradutor de "Os Amores Amarelos", de Tristan Corbière (ed. Iluminuras), entre outros.

Não
124 págs., R$ 50
de Augusto de Campos. Editora Perspectiva (av. Brigadeiro Luís Antônio, 3.025, CEP 01401-000, SP, tel. 0/xx/11/ 3885-8388).

Invenção
278 págs., R$ 35
de Augusto de Campos. Editora Arx (av. Raimundo Pereira de Magalhães, 3.305, CEP 05145-200, SP, tel. 0/xx/11/ 3649-4600).


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