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+Sociedade
Tragédias de verão
Enchentes em Santa Catarina decorreram
de negligência em vários níveis, mas autoridades sempre recorrem à desculpa
da "fatalidade"
WAGNER COSTA RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Todo verão é a mesma
coisa. Chuvas fortes
geram desastres,
quando não catástrofes, com grandes prejuízos materiais e, o pior, mortes. Muitas, como é o caso em
Santa Catarina neste ano.
A banalização do risco é uma
das características da sociedade contemporânea. Tem gente
que nem se dá conta da presença dele. Quando o evento ocorre, parece ser uma novidade, algo inesperado, sobre o qual nada se poderia fazer. Tudo vira
"fatalidade".
O apelo à ciência é imediato.
Autoridades rapidamente sacam números para afirmar o
exagerado volume de água que
caiu sobre uma parcela do território brasileiro em curto período de tempo.
Meios técnicos
Ainda que ele esteja acima da
média, não se pode argumentar
que chuvas intensas sejam desconhecidas no país.
Na literatura técnica e científica encontram-se vários registros de eventos extremos como
o que se abateu no Estado do
Sul do Brasil, o que indica que é
possível imaginar que possam
ocorrer novamente.
Além disso, o país dispõe de
meios técnicos para acompanhar o movimento de uma
massa de ar e calcular quando
chegará a uma determinada localidade com alguma precisão,
o que confere alguma previsibilidade ao trágico acontecimento. A dimensão catastrófica que
o problema assume decorre da
presença de população em
áreas de risco, o que remete necessariamente às ciências sociais e aplicadas.
Explicar por que pessoas moram ou instalam atividades
produtivas em áreas que deveriam estar sem uso não é possível por meio das ciências da natureza. É preciso combinar aspectos sociais, históricos, culturais, geográficos, políticos,
emocionais e econômicos para
entender o povoamento de
uma determinada localidade
que gera risco.
Encostas íngremes e várzeas
são áreas de risco socioambiental. No primeiro caso, quando
apresentam elevada declividade, não podem ser usadas para
a instalação de habitações, ainda mais quando não cumprem
os mínimos requisitos técnicos.
"Mar de lama"
O "mar de lama", expressão
muito usada por parte da população afetada pela catástrofe
que atingiu o país, resulta da saturação do solo -o qual, mais
pesado do que em sua situação
normal, simplesmente escorrega sobre a rocha que o sustenta,
levando tudo aquilo que se encontra nele.
Trata-se de um movimento
natural que não pode ser contido nem mesmo com barreiras
artificiais, como as inserções de
concreto armado ou teias de
contenção, que, quando muito,
o retardam.
O mesmo se pode escrever
para áreas de expansão natural
dos cursos d'água, as várzeas,
que cumprem a função de receber fluxos intensos de água em
períodos de elevada pluviosidade. As várzeas também não poderiam estar ocupadas com
vias, estabelecimentos comerciais, prédios e residências das
mais variadas ordens.
Naturalmente um rio se espraia sobre a várzea e alaga essa
área, que lhe pertence, ainda
que, de acordo com o estatuto
jurídico, ela tenha sido retalhada em lotes urbanos, dando a
falsa idéia que a propriedade da
área é de um citadino.
Com o argumento de proteger a propriedade, aqueles que
ocuparam áreas que deveriam
estar livres para acolher processos naturais sazonais apelam ao Estado, que passa a ser o
culpado pela chuva forte e,
principalmente, por não ter se
antecipado e evitado prejuízos
e mortes.
Ora, o Estado não pode controlar a chuva! A dinâmica que
gera uma tempestade está longe de ser regulamentada por
políticas públicas.
Porém, cabe ao Estado se antecipar e proteger a população
de acontecimentos como os
que ocorreram, mas cabe, antes
de mais nada, impedir a ocupação de áreas de risco.
No caso brasileiro, nos diversos níveis de governo, o Estado
não cumpre nenhuma das duas
funções a contento, salvo algumas exceções.
O que caberia ao Estado para
evitar catástrofes?
Antes de mais nada, impedir
a ocupação de áreas de risco.
Uma vez ocupadas, promover a remoção da população, ao
menos nas situações mais graves, que podem ser levantadas
em períodos de estiagem.
Depois, promover ações que
acomodem os intensos fluxos
esporádicos de água, como reter água nas cabeceiras ou nas
várzeas (o piscinão é uma das
alternativas técnicas, que também pode gerar dificuldades se
não for monitorado), recuperar
as matas ciliares e, nas cabeceiras, reintroduzir espécies originais em encostas íngremes, entre outras medidas técnicas.
Planos de prevenção
Mas a principal medida seria
treinar a população para que
deixasse suas casas e locais de
trabalho em casos de situações-limite quando ocupam área de
risco.
Para tal, é preciso estabelecer
um plano de evacuação, que deve ser acionado desde que um
evento extremo esteja confirmado por técnicos do Estado.
Eles devem informar a ocorrência antecipadamente a representantes da Defesa Civil
das localidades a serem afetadas, que devem orientar o
abandono da área, em uma
ação combinada entre diversos
níveis de governo.
Enquanto o risco for negligenciado ou, mais grave, omitido pelas autoridades públicas à
população, só restará lamentar
perdas humanas e materiais.
Porém, como alertou o sociólogo alemão Ulrich Beck há
mais de dez anos, a sociedade
de risco desenvolveu uma capacidade reflexiva sobre sua condição que pode levar a uma mudança de atitude.
No caso brasileiro, resta a esperança de que essa catástrofe
gere ao menos mais reflexão e
ações para evitar sua repetição
nos próximos anos.
WAGNER COSTA RIBEIRO leciona no departamento de geografia da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da USP, onde coordena o grupo de estudos de ciências ambientais
do Instituto de Estudos Avançados. Escreveu
"Geografia Política da Água" (ed. Annablume).
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