São Paulo, domingo, 30 de novembro de 2008

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A linha de sombra

Nos contos de "Mães e Filhos", o escritor irlandês Colm Tóibín mergulha em relacionamentos familiares em crise


O autor irlandês encontra no fracasso o motivo essencial de seus relatos

CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA

Quando um escritor constrói uma obra em diálogo direto com o passado, nossos automatismos tendem a reduzi-lo a um campo de referências e citações disfarçadas ou assumidas, tudo se resumindo, de certo modo, a um jogo com uma ou várias ascendências. O figurino parecia se ajustar sem esforços ao irlandês Colm Tóibín, sobretudo quando, em 2004, o autor publicou "O Mestre", romance biográfico que elegia Henry James [1843-1916] como personagem e, com essa aparente astúcia, reivindicava filiação à linhagem do célebre autor de "Retrato de uma Senhora". Depois de quatro anos, muitos prêmios importantes e uma participação bastante comentada na edição de 2004 da Flip, Tóibín retorna em chave mais discreta e não menos sedutora, com uma coleção de nove histórias curtas agrupadas sob um título -"Mães e Filhos"- que mais engana que revela. Com elas, foge da previsível senda de se tornar "autor de luxo" ou de ficções homoeróticas, com clientela fixa e satisfeita, para manter-se fiel a seus próprios recursos. Em vez de se reduzir a emular autores canonizados ou, pior, assegurar a fama graças a um nicho temático, Tóibín indica estar em busca de um espaço e de um sentimento que permitam reconhecer sua assinatura por outras razões. Essa faceta pode interessar não tanto o leitor que se entusiasmou com a reconstituição em filigrana de "O Mestre" ou com os ecos de Virginia Woolf [1882-1941] que ainda comprometiam seus esforços em "A Luz do Farol". Mas pode capturar quem prefere buscar na ficção esse algo que escapa às concepções prontas de escrita "literária". Como anunciavam seus primeiros trabalhos, a maioria traduzida no Brasil, o autor irlandês encontra no fracasso o motivo essencial de seus relatos. E, na brutalidade de seus efeitos, a força com a qual seu texto se esforça para dialogar.

Esgotamento
São, portanto, como anuncia o título, os laços maternos, rompidos ou pendentes, que alimentam estas nove ficções curtas. O tema, sempre ameaçado de esgotamento (vide os tediosos acertos de contas familiares que consolidaram o nome de Michael Cunningham, por exemplo), impõe, por outros meios, vitalidade a "Mães e Filhos".
Tanto mães como filhos encontram-se, da primeira à última página, submetidos a um tipo de conexão que os converte em criaturas de exceção.
Um criminoso e um depressivo até perambulam por estas histórias, mas o autor não se satisfaz na compaixão pelos desajustados.
Ele prefere sondar o passado de modo mais ou menos reticente, sem que de lá traga uma razão pronta, tampouco uma satisfação que agrade a todos ou resolva problemas.
Mais até que filhos desajustados, são as mães que tentam escapar de seus lugares projetados pelos filhos (ou que estão radicalmente ausentes na figura de mortas recentes) que tornam estes relatos tão angustiantes.
Sobre eles paira uma forma de indecisão, quase sempre na figura de um passado que retorna subitamente, como em "Famous Blue Raincoat", canção que dá título a um dos contos mais sofridos do lote.
Aqui, um passado encaixotado é involuntariamente libertado e, com ele, traz uma dor contida. A memória nos relatos de Tóibín não chega a ser, numa chave proustiana, um meio de busca. Seu efeito parece mais colateral, como um relâmpago (ou um choque) que traz de volta ao presente o impacto dos traumas.

Fins sem conclusões
Figurados como retorno, reaparições ou reencontros, o que eles guardam em comum é o fato de não promoverem nenhum tipo de solução, o que se reflete nos fins sem conclusões que se repetem neste conjunto de histórias.
Conduzido por este tipo de situação reiterativa, os ciclos de desencontro alcançam o ápice em "Um Longo Inverno", última, mais extensa e impactante história do conjunto.
Nela, a desaparição súbita da figura da mãe coloca pai e filho em situação primeiro de busca, depois de espera, num suspense que revela muito enquanto pouco conta.
Com o artifício das histórias de mistério, Tóibín nos conduz para a zona de sombra e de indefinições que torna a leitura de seus textos um exercício que proporciona um salutar desconforto.


MÃES E FILHOS
Autor: Colm Tóibín
Tradução: Beth Vieira
Editora: Companhia das Letras (tel. 0/ xx/11/ 3707-3500).
Quanto: R$ 48,50 (272 págs.)


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