São Paulo, domingo, 30 de dezembro de 2001

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Ponto de fuga

Espiar

"Durante os ataques, embora fôssemos amigos, trabalhando juntos, a única coisa na qual poderíamos estar pensando era na autopreservação. (...) Quando o ataque terminava, nós, de modo algum, condenávamos uns aos outros, mas isso me fez compreender os limites da amizade." Kinji Fukasaku lembra-se, nessas frases, de episódios ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial. Seu recente filme, "Batalha Real", mostra colegiais enviados para uma ilha, onde cada um deve matar os outros, até que reste um só. Lembra "O Sobrevivente", de Paul Glaser, ou "Le Prix du Danger", de Yves Boisset.
É um tema que conduziu o cinema a interrogar certas formas da violência no mundo contemporâneo, partindo de jogos televisivos, do tipo "reality show". Batalha real inocula, nesse filão, espontaneidade e frescor juvenis, que, aos 71 anos, Fukasaku preserva intactos. Acusa o mundo adulto, autoritário e violento, investe na sinceridade adolescente e no amor: por eles, um casalzinho consegue demolir as regras do jogo.
O preço, no entanto, é uma fuga eterna dentro da sociedade para a qual voltam. Os participantes são involuntários; o autoritarismo fascista recai sobre os jovens, impondo-lhes uma "leal" concorrência, pois todos partem com pretensa igualdade de chances. O humanismo do diretor levanta-se contra o extermínio do sentimento de humanidade que existe em cada um, aniquilado pela estratégia, pela manha, pela dissimulação. Toda vitória exige uma renúncia pavorosa. A questão mais alta é: como se manter humano em tempos de horror?
Anfibolia - "Batalha Real", "O Sobrevivente", "Le Prix du Danger" e ainda "O Alvo", de John Woo, ou, bem recente, "The Contender", de Rod Lure: todos esses filmes, de modos mais ou menos complexos, demonstram que só há vitória de fato se o princípio do jogo for arruinado. É o próprio jogo o grande vilão. Mas, para que tudo isso se demonstre, a ação deve ser exibida em nome da denúncia. Aí entram as delícias do espectador: combates singulares ou coletivos, violência, morte, sangue. Até que ponto a crítica, explicitada nos filmes, não esconde, na verdade, um álibi? Manter-se humano, em qualquer tempo, pressupõe a ambiguidade consciente desses prazeres e desses desejos, cultivados nos domínios imaginários. Mixoscopia: representar o mundo visível pelo visível provoca estímulos tão fortes que podem assustar e conduzir à destruição das imagens. A iconoclastia perpassou pelas formas mais radicais de várias religiões, adquirindo hoje, no Afeganistão, uma dramática atualidade.
Alguns filmes exploraram a vertiginosa perversidade das imagens, centrando-as no olho do voyeur. A câmara filmadora prolonga os poderes do olhar. Ela facilita ver sem ser visto: o voyeur tira sua força da trapaça. Duas obras-primas foram publicadas em DVD: "Peeping Tom" ("Mórbida Curiosidade"), de Michael Powell (Criterion), e "Os Mil Olhos do Dr. Mabuse", de Fritz Lang (Image). Ambos datam de 1960. Fazem a ponte entre o crime, o desarranjo mental e o prazer em vigiar. O cinema revela aí algumas de suas entranhas mais diabólicas. Em 1966, "Blow-Up", de Antonioni, a imagem dentro da imagem mostrava, carregando em si, bem no fundo, meio oculto e indistinto, o crime latente. O taleban iconoclasta preserva o olho das tentações do mundo visível. O cinema, ao contrário, mais que qualquer arte, desencavou as tentações para melhor nos expor a elas.
Tiflose - O modo extremo de se proteger das imagens é a cegueira. Wagner, na ópera "Parsifal", criou o personagem de Klingsor, que, para renunciar ao sexo, se castrou, buscando assim uma pureza sobre-humana. Mas não deu certo: Klingsor se subtraiu à tentação sem enfrentá-la e nisso pecou, mais que todos. No olho, encontra-se o voyeur, e a imagem é sua cúmplice. Talvez o crime esteja mesmo no fundo de cada imagem, como diz o "Blow-Up" de Antonioni, mas no fundo desse crime se encontra sempre, pelo direito ou pelo avesso, a lição de humanidade.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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