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Ponto de fuga
Espiar
"Durante os ataques, embora fôssemos amigos, trabalhando juntos, a única coisa na qual poderíamos estar
pensando era na autopreservação. (...) Quando o ataque
terminava, nós, de modo algum, condenávamos uns
aos outros, mas isso me fez compreender os limites da
amizade." Kinji Fukasaku lembra-se, nessas frases, de
episódios ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial. Seu recente filme, "Batalha Real", mostra colegiais
enviados para uma ilha, onde cada um deve matar os
outros, até que reste um só. Lembra "O Sobrevivente",
de Paul Glaser, ou "Le Prix du Danger", de Yves Boisset.
É um tema que conduziu o cinema a interrogar certas
formas da violência no mundo contemporâneo, partindo de jogos televisivos, do tipo "reality show". Batalha
real inocula, nesse filão, espontaneidade e frescor juvenis, que, aos 71 anos, Fukasaku preserva intactos. Acusa
o mundo adulto, autoritário e violento, investe na sinceridade adolescente e no amor: por eles, um casalzinho
consegue demolir as regras do jogo.
O preço, no entanto, é uma fuga eterna dentro da sociedade para a qual voltam. Os participantes são involuntários; o autoritarismo fascista recai sobre os jovens,
impondo-lhes uma "leal" concorrência, pois todos partem com pretensa igualdade de chances. O humanismo
do diretor levanta-se contra o extermínio do sentimento de humanidade que existe em cada um, aniquilado
pela estratégia, pela manha, pela dissimulação. Toda vitória exige uma renúncia pavorosa. A questão mais alta
é: como se manter humano em tempos de horror?
Anfibolia - "Batalha Real", "O Sobrevivente", "Le Prix
du Danger" e ainda "O Alvo", de John Woo, ou, bem recente, "The Contender", de Rod Lure: todos esses filmes, de modos mais ou menos complexos, demonstram que só há vitória de fato se o princípio do jogo for
arruinado. É o próprio jogo o grande vilão. Mas, para
que tudo isso se demonstre, a ação deve ser exibida em
nome da denúncia. Aí entram as delícias do espectador:
combates singulares ou coletivos, violência, morte, sangue. Até que ponto a crítica, explicitada nos filmes, não
esconde, na verdade, um álibi? Manter-se humano, em
qualquer tempo, pressupõe a ambiguidade consciente
desses prazeres e desses desejos, cultivados nos domínios imaginários. Mixoscopia: representar o mundo visível pelo visível provoca estímulos tão fortes que podem assustar e conduzir à destruição das imagens. A
iconoclastia perpassou pelas formas mais radicais de
várias religiões, adquirindo hoje, no Afeganistão, uma
dramática atualidade.
Alguns filmes exploraram a vertiginosa perversidade
das imagens, centrando-as no olho do voyeur. A câmara filmadora prolonga os poderes do olhar. Ela facilita
ver sem ser visto: o voyeur tira sua força da trapaça.
Duas obras-primas foram publicadas em DVD: "Peeping Tom" ("Mórbida Curiosidade"), de Michael Powell (Criterion), e "Os Mil Olhos do Dr. Mabuse", de
Fritz Lang (Image). Ambos datam de 1960. Fazem a
ponte entre o crime, o desarranjo mental e o prazer em
vigiar. O cinema revela aí algumas de suas entranhas
mais diabólicas. Em 1966, "Blow-Up", de Antonioni, a
imagem dentro da imagem mostrava, carregando em
si, bem no fundo, meio oculto e indistinto, o crime latente. O taleban iconoclasta preserva o olho das tentações do mundo visível. O cinema, ao contrário, mais
que qualquer arte, desencavou as tentações para melhor nos expor a elas.
Tiflose - O modo extremo de se proteger das imagens
é a cegueira. Wagner, na ópera "Parsifal", criou o personagem de Klingsor, que, para renunciar ao sexo, se castrou, buscando assim uma pureza sobre-humana. Mas
não deu certo: Klingsor se subtraiu à tentação sem enfrentá-la e nisso pecou, mais que todos. No olho, encontra-se o voyeur, e a imagem é sua cúmplice. Talvez o crime esteja mesmo no fundo de cada imagem, como diz o
"Blow-Up" de Antonioni, mas no fundo desse crime se
encontra sempre, pelo direito ou pelo avesso, a lição de
humanidade.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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