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Em "Autoridade", o sociólogo Richard Sennett mantém
parte do brilho, mas derrapa na falta de rigor conceitual
Os laços modernos do afeto
Antônio Flávio Pierucci
especial para a Folha
Quem não acompanha de perto
a sequência das publicações de
Richard Sennett pode se iludir
quando, na abertura dessa tradução, ele apresenta "Autoridade" como
"o primeiro de quatro ensaios inter-relacionados sobre os laços afetivos da sociedade moderna" (pág. 13). O segundo trataria da solidão, o terceiro, da fraternidade, e o quarto, dos rituais. Quer dizer que
virão mais três? -pode pensar, sem saber que não, não virão. Simplesmente
porque o projeto gorou. Passaram-se 20
anos desde que o anúncio foi feito, e o
autor não compôs os quatro ensaios prometidos. Ficou só no primeiro, este, que
trata dos laços de autoridade.
Publicado em 1981, "Autoridade" passou despercebido. Obscura tentativa de
dar início a uma obra programada depois do sucesso de vendagem e receptividade acadêmica de "O Declínio do Homem Público" (Companhia das Letras),
de 1974, sucesso em várias línguas que se
repetiu no Brasil dos anos 80, obra inesquecível que, em concertado lance de genialidade e astúcia, alçou de chofre ao
céu de estrelas da sociologia americana o
nome desse psicólogo social, gravando-o
definitivamente na calçada da fama.
O complexo no simples
Sennett tem uma longa trajetória de crítica cultural e reflexão histórica sobre as dimensões psicossociais da vida moderna.
Se sua astúcia está em dosar com calculada isonomia a adesão sempre parcial
aos inúmeros autores que cita e contrasta e pelos quais transita sem nenhuma
lealdade de adepto ou seguidor, sua genialidade reside no dom de capturar
uma idéia complexa num enunciado
simples, porém intrigante, sem a pretensão de estar ali a trabalhar pacientemente um conceito no
interior de um sistema em
armação (e sem, por outro lado, querer nos meter
nesse trabalho). "Laços de
rejeição", por exemplo.
Esse oxímoro me fica como a coisa mais marcante da leitura de
"Autoridade".
Com ele, Sennett procura descrever essa miríade de casais que todos nós conhecemos, em que os cônjuges reclamam um do outro sem parar, mas não
conseguem se separar. A rejeição reforça
o vínculo, não o desfaz. "E, muitas vezes,
o que ouvimos não é ódio nem repulsa
em relação aos quais a pessoa é fraca demais para agir. Ao contrário, existe uma
necessidade da outra pessoa, necessidade que não pode ser admitida em segurança e tem que ser mascarada, tornando-se segura através das declarações de
rejeição. A rejeição da outra pessoa e o
vínculo com ela são inseparáveis" (págs.
43-4). Se isso se passa entre iguais, a fortiori vai ocorrer na relação de autoridade, que "é uma ligação entre pessoas desiguais" (pág. 22). "Na sociedade moderna", diz Sennett, "tornamo-nos hábeis
em construir vínculos de rejeição com as
autoridades" (pág. 44).
Sennett costuma se mover com incrível
segurança entre o privado e o público, o
psicológico e o sociológico, o histórico e
o contemporâneo, mas às vezes lhe falta
o chão, como em "Autoridade", e então
toda essa mobilidade de certa forma aparece travada, girando em falso. Tanto
mais, quanto mais conspícua se mostra a
ausência de um trabalho de conceituação. Para que me entendam os leitores:
em sua psicologia social muitas vezes
alusiva e lacunarmente empírica, Richard Sennett me parece o exato oposto
de Pierre Bourdieu quando constrói sua
sociologia procurando metodicamente
imbricar, peça com peça e sempre de novo, os mesmos tijolos conceituais. Sennett varia mais, é menos fiel a si mesmo e
a um programa teórico.
Indolência conceitual
Seu método aqui é primariamente
anedótico: narra episódios. Alguns são casos clínicos, tratados não como
casos que são, mas como
ângulos de visão, vislumbres, resultando em quadros sempre incompletos,
sem nitidez, porquanto
apenas pontos de vista,
móveis, diversos. Isso, se por um lado
pode fazer de um livro seu uma leitura
bem interessante, por outro, quando falha a inspiração, pode escancarar-lhe a
indolência conceitual.
Perguntar não ofende: o que é que leva
uma editora brasileira de reconhecido tino comercial a traduzir e lançar, 20 anos
depois da edição original, um livro morno, desimportante e, já para a época de
sua aparição, rebarbativo?
Aparentemente não há explicação. Talvez explique essa decisão editorial tão
desnorteada quanto o livro a boa acolhida que teve, entre os formadores de opinião da nova esquerda antineoliberal no
Brasil, o último sucesso literário de Sennett: "A Corrosão do Caráter", atilado estudo dos efeitos psicologicamente deletérios do capitalismo "flexível" sobre a
identidade pessoal dos trabalhadores,
lançado nos Estados Unidos em 1998 e
editado pela mesma Record em 1999,
ainda no calor do sucesso internacional.
Esse livro, sim, continua valendo a pena
ler, exemplo acabado que é de crítica liberal do neoliberalismo. Já com "Autoridade", vai ser diferente. Quem o comprar, será pelo nome do autor, não pelo
livro em si -e, assim como eu, pode se
decepcionar bastante.
Dos livros de Sennett, este é o primeiro
a me frustrar tanto assim. A erudição do
autor impressiona sempre, sua capacidade de leitura é desmedida e, mais importante, o refinado brilho de seus insights sobre a atmosfera social e cultural
em meio à qual vivemos uns com os outros segue cintilante. Mas em "Autoridade" as centelhas se dissipam fácil demais
na nebulosa invertebrada de um livro
que se mostra fraco na estrutura, insatisfatório nos argumentos, ligeiro nas ruminações teóricas, superficial e negligente nas remissões eruditas insistentemente neutras. Um livro desorientado,
para não dizer descentrado. Com rarefeita, quase nenhuma, autoridade.
Antônio Flávio Pierucci é professor do departamento de sociologia da USP e autor de "A Magia" (Publifolha) e "Ciladas da Diferença" (ed. 34).
Autoridade
270 págs., R$ 28,00
de Richard Sennett. Trad. Vera
Ribeiro. Record (r. Argentina,
171, CEP 20921-380, RJ, tel. 0/
xx/21/2585-2000).
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