São Paulo, domingo, 31 de março de 2002

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Em "Além do Apenas Moderno" Gilberto Freyre imagina o impacto da modernização sobre as sociedades futuras

O homem que pinta e borda

Rosa Maria Barboza de Araújo
especial para a Folha

Além do Apenas Moderno" é um livro da maturidade de Gilberto Freyre, em que o autor faz sugestões convincentes para o homem do futuro, em geral, e críticas estimulantes para o futuro do homem brasileiro, em particular. Fiel a seu estilo literário, claro e elegante, e a seu pensamento libertário, Freyre alerta o leitor contra vícios da modernidade de forma divertida, oferecendo um espetáculo de erudição. A reedição deste livro de 1973, esgotado há muitos anos, custou a sair. O prefácio de José Guilherme Merquior enriquece a obra, que conta ainda com um oportuno índice onomástico e dados biográficos do autor, facilitando a tarefa dos estudiosos da sociologia e da filosofia. O momento pessoal e intelectual de Gilberto Freyre é sintomático na obra. Ele tinha então 70 anos, havia esgotado a análise de questões-chave da sociologia, se permitindo chegar à futurologia, num tom de aconselhamento, sem nenhuma prepotência, mas com graça e segurança.

Revolução biossocial
Para Freyre não basta ao homem ser apenas moderno. É preciso ter a visão dos tempos pós-modernos, onde é imperativo o entendimento do tempo tríbio: passado, presente e futuro interdependentes. Essa noção implica uma revolução biossocial, a adaptação do homem ao ambiente, pela tecnologia, e do ambiente ao homem, para atender suas pós-modernas necessidades, como a melhora da refrigeração ou o aumento da média de expectativa de vida. A revolução se concentra na anulação de fronteiras rígidas entre sexos, na legalidade de suas formas intermediárias e amor homossexual, na quebra de fronteiras étnicas. O homem moderno pode bordar e cozinhar, atividades tipicamente femininas em tempos passados. A revolução biossocial inclui a automação crescente das necessidades cotidianas para o gozo de mais tempo livre, quebrando a máxima do "time is money". O tempo livre traz de volta arcaísmos românticos e abre espaço para atividades artísticas e culturais. O ócio pode mudar convenções rígidas sobre hábitos do homem e da mulher. Os governos não administram o tempo livre do homem médio. São os exploradores comerciais, como os donos de casas de bingo, hoje em dia, que sabem explorar o tempo livre. E haja passatempo. O tempo livre pode trazer problemas que afetam os ricos blasés, aqueles que têm fadiga e tédio que os levam às drogas, ao suicídio, ao abuso do álcool, a calmantes e sedativos. O tempo livre, segundo Freyre, pode ser dedicado a prazeres gregários ou da solidão, como ouvir música, remar, namorar, amar, gozar o sexo, dançar, ir ao teatro, ao cinema, ver TV, rezar em templos bonitos, acompanhar procissões, nadar, fumar cachimbo, tomar cerveja em terraços de cafés ou comer pratos deliciosos. Cabe lembrar, apesar de o autor não ter feito referência ao fato, que o ócio não é mais um inconveniente social, uma ameaça à ordem, como foi no Brasil do início da República, quando havia obrigatoriedade legal do trabalho e preocupação de educar o escravo liberto. Na visão do Código Penal de 1890, a vadiagem levava ao crime, e a pobreza era uma ameaça contra a segurança individual.

Pastel no botequim
O Brasil do livro, segundo Gilberto Freyre, estava em fase de transição, na era neotécnica, sem completa automatização. Ainda se identificava tempo com dinheiro e se acreditava que era imperdoável perder tempo. Os urbanitas, segundo o autor, jamais "perderiam" tempo sorvendo café, tomando refresco de coco, comendo pastel, sentados numa confeitaria ou num botequim. É gente contra o almoço ou o jantar demorado. Prefere comer sem vinho e sem cerveja, tomando água. Adora carne assada sem molho e sem tempero, tendo por sobremesa uma fruta, nunca um doce. Claro, o urbanita quer ser magro e elegante. As uniões amorosas, segundo Gilberto Freyre, só se mantêm monogâmicas de forma permanente, com estímulos de convivência. Por isso há uma tendência a aventuras poligâmicas, com o aumento da média de vida e do tempo desocupado. Isso leva à busca de satisfação no pendor ao místico, denotando uma vitória sobre a ciência. O homem pós-moderno não deve ser racional, mas sensível ao mistério da religiosidade. Um dos pontos altos da análise de Freyre é a contraposição do conceito ibérico do tempo ao conceito inglês. Para o autor, os mexicanos, centro-americanos e africanos são contra o horário rígido, a tirania do relógio, tendendo a aproximar-se da harmonia com a natureza. O conceito ibérico vai além do moderno, pois cultiva viver ludicamente. É o tempo telúrico contra o mecânico, o experimental contra o matemático, o mexicano contra o norte-americano, os compromissos adiáveis contra o tempo exato.

Um pouco de anarquia
Para Freyre, a tirania do ponteiro do relógio é coisa de polícia. Ela leva a problemas cardíacos, neuroses e divórcios. Por isso as sociedades precisam de um pouco de anarquia, de maior emoção, mais lazer e menos trabalho. Gilberto Freyre refere-se ao livro de Walter Kerr, "Declínio do Prazer", em que o autor prova que os americanos não sabem usar o tempo. Freyre lembra a capacidade lúdica dos hispanos e luso-tropicais, dando como exemplo máximo o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro, onde as pessoas passam o ano inteiro preparando o Carnaval e se sentem recompensadas na festa, apogeu da alegria.
As considerações de Gilberto Freyre sobre o tempo, o ócio e o lazer são pertinentes, mas deixam ao leitor uma pergunta. Como reagiria Freyre à comunicação da internet e do telefone celular nos dias de hoje? Será que ela acabou com a semana inglesa, com o repouso remunerado, com o horário regulamentado de trabalho? Certamente o livro não esgota, felizmente, a discussão da pós-modernidade.


Rosa Maria Barboza de Araújo é historiadora e autora de "A Vocação do Prazer - A Cidade e a Família no Rio de Janeiro Republicano" (Rocco).


Além do Apenas Moderno
314 págs., R$ 37,00
de Gilberto Freyre. Ed. Topbooks (r. Visconde de Inhaúma, 58, sala 203, CEP 20091-000, RJ, tel. 0/xx/21/2233-8718).


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