|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ livros
Em "Além do Apenas Moderno" Gilberto Freyre imagina o impacto da modernização sobre as sociedades futuras
O homem que pinta e borda
Rosa Maria Barboza de Araújo
especial para a Folha
Além do Apenas Moderno" é um
livro da maturidade de Gilberto
Freyre, em que o autor faz sugestões convincentes para o homem
do futuro, em geral, e críticas estimulantes para o futuro do homem brasileiro,
em particular. Fiel a seu estilo literário,
claro e elegante, e a seu pensamento libertário, Freyre alerta o leitor contra vícios da modernidade de forma divertida,
oferecendo um espetáculo de erudição.
A reedição deste livro de 1973, esgotado há muitos anos, custou a sair. O prefácio de José Guilherme Merquior enriquece a obra, que conta ainda com um
oportuno índice onomástico e dados
biográficos do autor, facilitando a tarefa
dos estudiosos da sociologia e da filosofia. O momento pessoal e intelectual de
Gilberto Freyre é sintomático na obra.
Ele tinha então 70 anos, havia esgotado a
análise de questões-chave da sociologia,
se permitindo chegar à futurologia, num
tom de aconselhamento, sem nenhuma
prepotência, mas com graça e segurança.
Revolução biossocial
Para Freyre não basta ao homem ser apenas moderno. É preciso ter a visão dos tempos pós-modernos, onde é imperativo o entendimento do tempo tríbio: passado, presente e futuro interdependentes. Essa noção
implica uma revolução biossocial, a
adaptação do homem ao ambiente, pela
tecnologia, e do ambiente ao homem,
para atender suas pós-modernas necessidades, como a melhora da refrigeração
ou o aumento da média de expectativa
de vida. A revolução se concentra na
anulação de fronteiras rígidas entre sexos, na legalidade de suas formas intermediárias e amor homossexual, na quebra de fronteiras étnicas. O homem moderno pode bordar e cozinhar, atividades tipicamente femininas em tempos passados.
A revolução biossocial
inclui a automação crescente das necessidades
cotidianas para o gozo de
mais tempo livre, quebrando a máxima do "time is money". O tempo livre traz de volta arcaísmos românticos e
abre espaço para atividades artísticas e
culturais. O ócio pode mudar convenções rígidas sobre hábitos do homem e
da mulher. Os governos não administram o tempo livre do homem médio.
São os exploradores comerciais, como
os donos de casas de bingo, hoje em dia,
que sabem explorar o tempo livre. E haja
passatempo. O tempo livre pode trazer
problemas que afetam os ricos blasés,
aqueles que têm fadiga e tédio que os levam às drogas, ao suicídio, ao abuso do
álcool, a calmantes e sedativos.
O tempo livre, segundo Freyre, pode
ser dedicado a prazeres gregários ou da
solidão, como ouvir música, remar, namorar, amar, gozar o sexo, dançar, ir ao
teatro, ao cinema, ver TV, rezar em templos bonitos, acompanhar procissões,
nadar, fumar cachimbo, tomar cerveja
em terraços de cafés ou comer pratos deliciosos. Cabe lembrar, apesar de o autor
não ter feito referência ao fato, que o ócio
não é mais um inconveniente social,
uma ameaça à ordem, como foi no Brasil
do início da República, quando havia
obrigatoriedade legal do trabalho e preocupação de educar o escravo liberto. Na
visão do Código Penal de 1890, a vadiagem levava ao crime, e a pobreza era uma
ameaça contra a segurança individual.
Pastel no botequim
O Brasil do livro, segundo Gilberto Freyre, estava em
fase de transição, na era neotécnica, sem
completa automatização. Ainda se identificava tempo com dinheiro e se acreditava que era imperdoável perder tempo.
Os urbanitas, segundo o autor, jamais
"perderiam" tempo sorvendo café, tomando refresco de coco, comendo pastel, sentados numa confeitaria ou num
botequim.
É gente contra o almoço ou o jantar demorado. Prefere comer sem vinho e sem
cerveja, tomando água. Adora carne assada sem molho e sem tempero, tendo
por sobremesa uma fruta,
nunca um doce. Claro, o
urbanita quer ser magro e
elegante.
As uniões amorosas, segundo Gilberto Freyre, só
se mantêm monogâmicas
de forma permanente,
com estímulos de convivência. Por isso há uma tendência a
aventuras poligâmicas, com o aumento
da média de vida e do tempo desocupado. Isso leva à busca de satisfação no
pendor ao místico, denotando uma vitória sobre a ciência. O homem pós-moderno não deve ser racional, mas sensível
ao mistério da religiosidade.
Um dos pontos altos da análise de
Freyre é a contraposição do conceito ibérico do tempo ao conceito inglês. Para o
autor, os mexicanos, centro-americanos
e africanos são contra o horário rígido, a
tirania do relógio, tendendo a aproximar-se da harmonia com a natureza. O
conceito ibérico vai além do moderno,
pois cultiva viver ludicamente. É o tempo telúrico contra o mecânico, o experimental contra o matemático, o mexicano
contra o norte-americano, os compromissos adiáveis contra o tempo exato.
Um pouco de anarquia
Para Freyre, a tirania do ponteiro do relógio é coisa
de polícia. Ela leva a problemas cardíacos, neuroses e divórcios. Por isso as sociedades precisam de um pouco de anarquia, de maior emoção, mais lazer e menos trabalho. Gilberto Freyre refere-se ao
livro de Walter Kerr, "Declínio do Prazer", em que o autor prova que os americanos não sabem usar o tempo. Freyre
lembra a capacidade lúdica dos hispanos
e luso-tropicais, dando como exemplo
máximo o desfile das escolas de samba
do Rio de Janeiro, onde as pessoas passam o ano inteiro preparando o Carnaval
e se sentem recompensadas na festa,
apogeu da alegria.
As considerações de Gilberto Freyre
sobre o tempo, o ócio e o lazer são pertinentes, mas deixam ao leitor uma pergunta. Como reagiria Freyre à comunicação da internet e do telefone celular
nos dias de hoje? Será que ela acabou
com a semana inglesa, com o repouso remunerado, com o horário regulamentado de trabalho? Certamente o livro não
esgota, felizmente, a discussão da pós-modernidade.
Rosa Maria Barboza de Araújo é historiadora e
autora de "A Vocação do Prazer - A Cidade e a Família no Rio de Janeiro Republicano" (Rocco).
Além do Apenas Moderno
314 págs., R$ 37,00
de Gilberto Freyre. Ed. Topbooks (r. Visconde de Inhaúma,
58, sala 203, CEP 20091-000, RJ,
tel. 0/xx/21/2233-8718).
Texto Anterior: Os laços modernos do afeto Próximo Texto: Lançamentos Índice
|