São Paulo, domingo, 31 de maio de 2009

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O grande comunicador


BERLIN ACREDITAVA TER FALHADO COMO "FILÓSOFO DE OXFORD" E SE TORNOU MIDIÁTICO POR FALTA DE OPÇÃO


DA REDAÇÃO

O estatuto quase mítico de que Isaiah Berlin goza junto à mídia britânica atualmente ocorreu por falta de opção, defende o sociólogo inglês Steve Fuller. Para ele, o pensador sentia claramente ter falhado em sua intenção de se tornar um legítimo "filósofo de Oxford" e, por isso, lançou mão de sua grande capacidade de assimilação para se tornar um intelectual público.
Professor na Universidade de Warwick (Reino Unido), Fuller definiu o intelectual (em "O Intelectual", ed. Relume Dumará) como um "personagem" que sabe que tem um papel a desempenhar, pois está no "negócio de promover ideias".
Mas Fuller, na entrevista abaixo, também é duro em relação a Berlin. Ele arrisca dizer que o filósofo não hesitaria em defender certos meios -como guerra e tortura- para resguardar o princípio da liberdade no planeta. (MARCOS FLAMÍNIO PERES)

 

FOLHA - Por uma ironia da história, as ideias de Berlin foram em parte reivindicadas por partidos conservadores. Por quê?
STEVE FULLER
- Berlin nunca apoiou explicitamente os conservadores, embora eu possa entender a conexão entre ambos. Quando eu fazia a gradução na Universidade Columbia (EUA) no final dos anos 1970, um de meus professores, Robert Nisbet, se referia a ele como alguém que forneceu ao conservadorismo um rico "pano de fundo" histórico, como uma espécie de "Contra-Iluminismo". Isto é, não haveria apenas Edmund Burke, mas também Vico, Herder e Hamann.
Hoje, as novas gerações se esquecem de que a Guerra Fria foi travada entre "liberais" e "socialistas", e os "conservadores" foram legados à categoria de "reacionários". Berlin (talvez à sua revelia) reequilibrou a balança. Ele mostrou as origens do pluralismo no pensamento conservador e destacou que as tendências totalitárias aguardam qualquer deslize para surgir, tanto em meio ao socialismo quanto ao liberalismo.
Embora eu não partilhe de seus temores, não posso negar que ele tornou o debate político mais interessante, ao menos no nível intelectual.

FOLHA - Tomando a definição de seu livro, Berlin se aproxima mais do intelectual ou do acadêmico?
FULLER
- A substância do pensamento de Berlin é hoje ignorada nos círculos acadêmicos, embora alguns de seus termos -como "pluralismo", "liberdade positiva" e "liberdade negativa"- ainda sejam utilizados.
Penso que ele é um pouco como Raymond Aron na França, um acadêmico com forte presença pública contra a "correção política" de sua época. Mas Aron tinha a vantagem de ter sido contraposto claramente a Sartre.
Em contraste, como acontece com frequência no Reino Unido, Berlin era "tolerado". E, com o tempo, tornou-se um "tesouro nacional" -expressão usada para a família real e pessoas excêntricas, no bom sentido.
Berlin também tem tido influência significativa fora do Reino Unido, especialmente em países onde a luta contra autoritarismos e totalitarismos permanece viva. O megainvestidor George Soros, por exemplo, está organizando na cidade natal de Berlin -Riga, na Letônia (ex-república soviética)- um evento para comemorar simultaneamente os cem anos de Berlin e os 20 anos da queda do Muro de Berlim.
Apenas na Letônia os dois "Berlins" poderiam ser considerados dignos da mesma comemoração.

FOLHA - O Reino Unido, país em que viveu a maior parte de sua vida, vem sendo considerado um exemplo de tolerância e multiculturalismo no Ocidente. O sr. acredita que a influência de seu pensamento tem a ver com isso? Como ele percebeu essas mudanças?
FULLER
- Berlin certamente recebeu bem essas mudanças, mas não acho que suas ideias tenham de fato contribuído para elas. Um indicador melhor de seu pensamento pode ser encontrado na carreira de Michael Ignatieff [autor de "Isaiah Berlin - Uma Vida", ed. Record], seu biógrafo autorizado e agora líder do Partido Liberal do Canadá. Bem conhecido como intelectual público no Reino Unido, o próprio Ignatieff tende a admitir tortura e intervenções militares, ainda que limitadas, como um meio de aumentar a liberdade no mundo.
De fato, Berlin sempre alertou contra o perigo do indivíduo se fundir na massa. A esse respeito, Ignatieff promoveu, por meio de uma Realpolitik, algo que Berlin apenas teorizara.

FOLHA - Por outro lado, a ideia de liberdade vem sendo ameaçada pela ascensão do terrorismo, de fundamentalismos religiosos e, numa escala geopolítica, pela emergência de uma superpotência não-democrática. Qual a validade do pensamento de Berlin para entender esse novo contexto?
FULLER
- Minha aposta é de que ele falaria publicamente sobre a manutenção das liberdades civis, mesmo com as ameaças terroristas em escala global. Mas, reservadamente, apoiaria os esforços de pessoas como Ignatieff, no que diz respeito a tomar decisões duras sobre torturas e guerra, com a intenção de defender essas liberdades.

FOLHA - Citando o pos-scriptum de seu livro, o que aconteceu com Berlin após sua morte?
FULLER
- Berlin é lembrado pela mídia de massa -e com razão- como um intelectual público. Mas creio que tenha chegado a essa posição por falta de opção. Ele acreditava claramente que havia falhado em sua intenção de se tornar um "filósofo de Oxford", propriamente falando.
Entretanto, sabia de seus talentos e, em uma entrevista à BBC, descreveu a si mesmo como um grande "assimilador". E o rádio, em especial, era uma mídia em que poderia ser facilmente assimilado.
Berlin era um grande improvisador, que podia falar frases complexas e interessantes, sem anotações.
A raridade dessa capacidade ajuda a explicar a mística atual de Berlin junto à mídia britânica.
Ele representa o acadêmico que todas as pessoas querem, mas que nunca encontram, nas universidades.


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