São Paulo, domingo, 31 de julho de 2005

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Contra a fantasia dos simpatizantes de esquerda, livro de Raúl Rivero mostra a realidade das prisões e dos linchamentos morais em Cuba

Bem-aventurados os lascivos

FERNANDO GABEIRA
COLUNISTA DA FOLHA

Quando Raúl Rivero foi preso em Cuba, com mais 73 intelectuais, fui informado pela internet e tentei criar um comitê pela sua liberdade. A idéia fracassou porque havia uma indiferença grande em relação aos opositores em Cuba. Existem mesmo? O que são eles, o que querem?
Uma grande cortina de fumaça pairou sobre os círculos políticos e midiáticos do Brasil, mostrando apenas praias, charutos, comunidades preparadas para receber visitantes, enfim, propaganda oficial. Os simpatizantes de esquerda que visitaram a ilha, de um modo geral apenas confirmaram suas fantasias sobre Cuba, uma vez que uma bem organizada estrutura lá existe precisamente para que se confirme a visão romântica do comunismo.
O livro de Raúl Rivero, "Provas de Contato", chegou com um pouco de atraso em relação às suas prisões. Mas é fundamental que o talento desse escritor e jornalista nos ajude a compreender o que é a vida na ilha dominada por Fidel Castro e sua truculenta burocracia. Novas prisões de intelectuais estão sempre no horizonte e quem sabe, nas próximas, poderemos enfraquecer essa muralha de mentiras e ilusões sobre a natureza do regime .
Há um ponto comum no trabalho da geração de artistas destroçada pela repressão política. Reinaldo Arenas, com seu "Antes que Anoiteça" (ed. Record, adaptado para o cinema por Julian Schnabel, em 2000), revela como a sensualidade é uma forma de escapar ao horror da vida sob a burocracia comunista.
Raúl Rivero, em escala menor, expressa também essa tendência. No entanto, como seu livro, que é um jornalismo literário, abarca inúmeros temas e personagens da vida em Cuba, ele nos dá um panorama mais completo.
Deveria ser lido por todos esses turistas deslumbrados que voltam de Cuba, falando maravilhas do que viram no cenário preparado para eles. Rivero revela um aspecto que ilumina a vida de qualquer país: o interior de suas prisões.
Uma simples frase de um detento nos dá a idéia: "Corria o ano de 1988 (fevereiro ou março). Seis longos anos de férrea incomunicabilidade; pouco mais de 56.560 horas. Eu não estava louco".
Os que sobreviveram à loucura, os intelectuais que criam um ou dois frangos para viver, um homem que vive de seu gavião (o pássaro faz shows), as maravilhosas prostitutas que aceitam moeda local, é imensa a galeria de homens e mulheres comuns tentando sobreviver não só na miséria material mas na miséria política promovida pelo regime.

Além do turismo
Os turistas talvez não encontrem hoje uma reunião de repulsa, promovida pelo Ministério do Interior. Mas Rivero as conhece e as descreve bem. Elas foram importadas da experiência chinesa. Um casal de cientistas que tinha o hábito de conversar até a meia-noite, jogando cartas, foi estigmatizado pelos revolucionários e tiveram que expor um cartaz no pescoço, chamando-os de porcos burgueses.
Quando os comunistas falam de repressão sofrida pela direita, tendem a produzir heróis de nervos de aço. Os sobreviventes dessa longa opressão de Fidel Castro são pessoas comuns, apenas lutando pelas calorias necessárias, vivendo seus amores, ajudando-se no infortúnio.
A crônica sobre as prostitutas é que mais me tocou. Há humor, sensualidade, mas sobretudo uma visão clara da grandeza humana. O título "Bem-Aventuradas as que Cobram em Pesos" já revela a simpatia dessas mulheres que se dedicam aos cubanos e seus pobres presos. O diálogo de uma delas com o autor, nos coloca diretamente nas noites pobres de Havana: "Eu cobro pelo tempo completo 100 pesos e, de cara, a despesa. Se é uma coisa rápida (não vá escrever punheta, nem chupada, escreva os nomes finos que vocês usam) peço 20 pesos e estamos conversados".
O livro de Rivero, com seus presos políticos, seus assassinos comuns, suas jineteras (nome dado às putas), seus jornalistas tentando escrever a verdade, é um grande desafio ao regime cubano. Anos de fuzilamento, repressão, tortura, vigilância extrema, não conseguem apagar os vestígios da vida, ela floresce nas esquinas, nos espaços proibidos. Um deles é a casa de uma negra que aluga para jogadores. Eles jogam e deixam algum dinheiro com ela. Para manter o esquema, ela suborna um oficial de polícia que é louco para transar com ela. Cada vez que recebe a grana, ele reclama. E diz que a caixa que queria encher era outra.
Quando todo esse material ficar conhecido, o trabalho dos resistentes intelectuais cubanos, dos quais Raúl Rivero, o maior poeta do país, é um expoente, é muito provável que estejamos diante de um grande momento. Para além dessa carcaça romântica de homens barbudos fumando charuto, a força vital dos latinos conseguiu deixar para a humanidade um grande legado.
Vamos rezar para que não só os turistas mas setores políticos importantes do Brasil tomem conhecimento dessa realidade. Não é possível que queiram permanecer nessa pobreza de visão, produzida pelos opressores, uma visão que multiplica pelo mundo a grande sombra que reina sobre a ilha.


Provas de Contato
256 págs., R$ 36,00 de Raúl Rivero. Tradução de José Rubens Siqueira. Ed. Barcarolla (av. Pedroso de Moraes, 631, 11º andar, CEP 05419-000, São Paulo, SP, tel. 0/xx/11/ 3814-4600).



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