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Pai de Sancho, bisavô de Chicó
Um dos primeiros livros picarescos chega em edição bilíngue depois
de o original ter sido encontrado por acaso em prédio abandonado
JOSÉ MINDLIN
ESPECIAL PARA A FOLHA
Um livro como o "Lazarilho
de Tormes", surgido hoje,
poderia parecer escrito para a distração ou divertimento dos leitores, o que, aliás,
acontece com essa reedição em boa
hora publicada pela ed. 34, mas ele é
muito mais do que isso, e seu significado é muito mais importante.
Escrito há cerca de 450 anos, foi
provavelmente o primeiro a mudar
o estilo e o conteúdo da literatura vigente no período, em que ainda era
forte a corrente dos livros de cavalaria. Nestes, os principais personagens pertenciam à nobreza e até à
realeza, embora fictícios, todos envolvidos em aventuras deleitosas de
amor ou de guerra, mas desligados
do dia-a-dia da população em que
viviam, e que quase não aparece.
São livros de leitura apaixonante,
como o "Tirant lo Blanc", de Joanot
Martorell, um romance catalão do
século 15, muito lido na época e,
aliás, até hoje, ou a "Historia del Invencible Cavallero don Polindo", de
autor anônimo, publicado em Toledo em 1526, para citar somente dois.
"Tirant lo Blanc", como muitos outros, foi leitura de Cervantes -que o
considerava o maior dos livros-,
que nele se inspirou muito para as
aventuras de Dom Quixote, este, por
sua vez, um dos maiores livros da literatura universal, cujo quarto centenário o mundo está celebrando
neste ano.
O quadro quase paradisíaco dos
romances de cavalaria entrou pelo
século 16 sem nenhuma preocupação com a realidade ou dela retratando apenas a parte pomposa. Mas
eis que surge, em meados do século
16, o "pequeno grande livro" de que
trata esta resenha, o "Lazarilho de
Tormes", que tem como personagem principal um menino pobre,
abandonado, que luta por sua própria subsistência e busca astuciosamente ascensão social, esbarrando
com a insensibilidade dos seres superiores para quem trabalha, homens abastados, membros do baixo
clero e a própria Igreja Católica que,
por meio da Inquisição, proibiu a
leitura da obra.
Essa despertou, no entanto, grande interesse, pois no próprio ano de
seu aparecimento, 1554, saíram três
edições em diferentes cidades. A autoria se manteve naturalmente anônima, mas a Inquisição não impediu
a leitura, e possivelmente, diria até
provavelmente, foi lido também por
Cervantes, cuja obra imortal engloba toda a sociedade de seu tempo.
Nesse sentido, se poderia dizer que
em Dom Quixote existe também o
lado picaresco, não no grande personagem central que vive um sonho,
mas no bom senso astucioso de Sancho Pança.
"Lazarilho" marca o início do romance picaresco, em que a astúcia
dos personagens, via de regra de
classes inferiores, vence o despotismo dos poderosos. Mas "Lazarilho"
não é apenas um romance. É também, senão primordialmente, um
gesto corajoso de rebeldia da classe
oprimida, que buscava em vão uma
forma de ascensão social, e o enredo
imaginado pelo autor anônimo foi o
modo que este encontrou para tentar vencer as barreiras existentes.
A obra teve numerosas reimpressões, mas as várias edições do século
16 diferem entre si, dificultando a
determinação do verdadeiro texto
original. Deu-se então, em 1992,
uma aventura quase rocambolesca.
Na demolição de um prédio antigo
foram encontrados alguns livros escondidos por uma parede falsa, e entre eles havia um exemplar da edição
de 1554, presumivelmente com o
texto que mais se aproximava do
original, o que fez com que o texto
desse exemplar fosse adotado na
edição bilíngüe de que estamos tratando. Talvez o exemplar tenha sido
guardado por um leitor empenhado
em preservar a obra para o futuro, a
salvo das intempéries da censura. Fico me indagando, aliás, se não teria
sido o próprio autor que teria imaginado o estratagema, ainda que mantivesse o anonimato.
O livro termina bruscamente, frustrando o leitor, mas tanto poderiam
estar faltando alguns capítulos no
exemplar encontrado quase milagrosamente como é possível que o
autor, tendo feito Lazarilho entrar
no caminho da ascensão social,
achasse alcançado o objetivo de seu
romance.
O fato é que o livro merece ser lido,
juntamente com o estudo que o
acompanha, do erudito Mario M.
González.
José Mindlin é empresário e bibliófilo, autor de "Uma Vida entre Livros" (Edusp), entre outros.
Lazarilho de Tormes
224 págs., R$ 32
autor anônimo. Mario M. González (org.).
Tradução de Heloísa Costa Milton e Antonio
Esteves. Ed. 34 (r. Hungria, 592, Jardim Europa, CEP 01455-000, São Paulo, SP, tel. 0/xx/
11/3816-6777).
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