São Paulo, domingo, 31 de julho de 2005

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Pai de Sancho, bisavô de Chicó

Um dos primeiros livros picarescos chega em edição bilíngue depois de o original ter sido encontrado por acaso em prédio abandonado

JOSÉ MINDLIN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Um livro como o "Lazarilho de Tormes", surgido hoje, poderia parecer escrito para a distração ou divertimento dos leitores, o que, aliás, acontece com essa reedição em boa hora publicada pela ed. 34, mas ele é muito mais do que isso, e seu significado é muito mais importante.
Escrito há cerca de 450 anos, foi provavelmente o primeiro a mudar o estilo e o conteúdo da literatura vigente no período, em que ainda era forte a corrente dos livros de cavalaria. Nestes, os principais personagens pertenciam à nobreza e até à realeza, embora fictícios, todos envolvidos em aventuras deleitosas de amor ou de guerra, mas desligados do dia-a-dia da população em que viviam, e que quase não aparece.
São livros de leitura apaixonante, como o "Tirant lo Blanc", de Joanot Martorell, um romance catalão do século 15, muito lido na época e, aliás, até hoje, ou a "Historia del Invencible Cavallero don Polindo", de autor anônimo, publicado em Toledo em 1526, para citar somente dois. "Tirant lo Blanc", como muitos outros, foi leitura de Cervantes -que o considerava o maior dos livros-, que nele se inspirou muito para as aventuras de Dom Quixote, este, por sua vez, um dos maiores livros da literatura universal, cujo quarto centenário o mundo está celebrando neste ano.
O quadro quase paradisíaco dos romances de cavalaria entrou pelo século 16 sem nenhuma preocupação com a realidade ou dela retratando apenas a parte pomposa. Mas eis que surge, em meados do século 16, o "pequeno grande livro" de que trata esta resenha, o "Lazarilho de Tormes", que tem como personagem principal um menino pobre, abandonado, que luta por sua própria subsistência e busca astuciosamente ascensão social, esbarrando com a insensibilidade dos seres superiores para quem trabalha, homens abastados, membros do baixo clero e a própria Igreja Católica que, por meio da Inquisição, proibiu a leitura da obra.
Essa despertou, no entanto, grande interesse, pois no próprio ano de seu aparecimento, 1554, saíram três edições em diferentes cidades. A autoria se manteve naturalmente anônima, mas a Inquisição não impediu a leitura, e possivelmente, diria até provavelmente, foi lido também por Cervantes, cuja obra imortal engloba toda a sociedade de seu tempo. Nesse sentido, se poderia dizer que em Dom Quixote existe também o lado picaresco, não no grande personagem central que vive um sonho, mas no bom senso astucioso de Sancho Pança.
"Lazarilho" marca o início do romance picaresco, em que a astúcia dos personagens, via de regra de classes inferiores, vence o despotismo dos poderosos. Mas "Lazarilho" não é apenas um romance. É também, senão primordialmente, um gesto corajoso de rebeldia da classe oprimida, que buscava em vão uma forma de ascensão social, e o enredo imaginado pelo autor anônimo foi o modo que este encontrou para tentar vencer as barreiras existentes.
A obra teve numerosas reimpressões, mas as várias edições do século 16 diferem entre si, dificultando a determinação do verdadeiro texto original. Deu-se então, em 1992, uma aventura quase rocambolesca.
Na demolição de um prédio antigo foram encontrados alguns livros escondidos por uma parede falsa, e entre eles havia um exemplar da edição de 1554, presumivelmente com o texto que mais se aproximava do original, o que fez com que o texto desse exemplar fosse adotado na edição bilíngüe de que estamos tratando. Talvez o exemplar tenha sido guardado por um leitor empenhado em preservar a obra para o futuro, a salvo das intempéries da censura. Fico me indagando, aliás, se não teria sido o próprio autor que teria imaginado o estratagema, ainda que mantivesse o anonimato.
O livro termina bruscamente, frustrando o leitor, mas tanto poderiam estar faltando alguns capítulos no exemplar encontrado quase milagrosamente como é possível que o autor, tendo feito Lazarilho entrar no caminho da ascensão social, achasse alcançado o objetivo de seu romance.
O fato é que o livro merece ser lido, juntamente com o estudo que o acompanha, do erudito Mario M. González.


José Mindlin é empresário e bibliófilo, autor de "Uma Vida entre Livros" (Edusp), entre outros.

Lazarilho de Tormes
224 págs., R$ 32 autor anônimo. Mario M. González (org.). Tradução de Heloísa Costa Milton e Antonio Esteves. Ed. 34 (r. Hungria, 592, Jardim Europa, CEP 01455-000, São Paulo, SP, tel. 0/xx/ 11/3816-6777).



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