São Paulo, domingo, 31 de agosto de 2008

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Vagas e vogas da crítica

Após a hegemonia de teorias como estruturalismo e marxismo, ciências humanas parecem entrar num período de transição


Daí meu desconforto diante dos que continuam a pensar a história a partir de um único ponto de vista

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA

João Cruz Costa, que ensinou na USP nos anos 1950 e 1960 a fazer filosofia pensando no Brasil, sempre nos alertava sobre as periódicas levas de pensamento que recebíamos de fora, verdadeiros furacões ameaçando afogar as sementes que estavam sendo cultivadas.
Fiel a seu ensino, observo que, desde os meados do século passado, filosofia e ciências humanas sofreram o rolo compressor do estruturalismo, da filosofia analítica, do marxismo althusseriano e gramciano, do habermasianismo. Agora parece que entramos num período de transição, pois não temos hoje paradigmas dominantes.
Sobraram os estudos particulares sem grandes aspirações metodológicas e o esforço dos partidários da Escola de Frankfurt, vaga tendência para a qual todos os gatos são pardos, desde que vistos da óptica da "emancipação". À margem se nota ainda a influência de "letterati", gente de formação em literatura que se projeta no mundo da cultura, principalmente nos interstícios dos meios de comunicação.
Mas não é apenas no nível da recepção das idéias que isso acontece, a história de sua produção também apresenta momentos importantes de solução de continuidade.
De repente, uma idéia, que permanecera à margem do pensamento dominante vem para o centro e satura todo o ambiente. Exemplo clássico foi a aceitação do heliocentrismo. Copérnico, no seu livro de 1543, mostrou que tomar o sol como o centro de nosso universo simplificava enormemente o cálculo dos movimentos dos astros, mas não afirmou a verdade dessa hipótese.

O homem no universo
Mas, quando Galileu introduziu o uso da luneta na observação do céu, isso em 1606, rapidamente os melhores pensadores do século se converteram ao heliocentrismo. É todo um sistema de idéias que desaba, alterando a posição dos seres humanos no universo.
Mas não foi apenas a interpretação de novos fatos que provocou essa comoção, pois só mais tarde é que se armou uma teoria óptica assegurando que a imagem de um satélite de Júpiter não era um efeito produzido pela própria luneta.
É toda uma imagem do mundo que se altera.
O caso do marxismo é o inverso, pois ele desaparece como num passe se mágica. No fim do século 19 era aceito por líderes do movimento operário, embora sempre estivesse em competição com o anarquismo. Legitima a Revolução Russa de 1917 e, sob a forma de marxismo-leninismo, passa a dominar os movimentos de esquerda.
Nos anos 1950, Jean-Paul Sartre o coloca como o horizonte intransponível da filosofia contemporânea, e Maurice Merleau-Ponty, filósofo cauteloso, não tem dúvidas ao afirmar que o marxismo não era apenas uma filosofia da história, mas a própria filosofia da história, sendo que renunciar a ele seria cavar o túmulo da razão na história.
Mas nos anos 1980 o marxismo se desmilingüe. Algumas ilhas sobraram no oceano: continua sendo cultivado por alguns historiadores e alguns literatos, mas basta examinar a lista das publicações a partir dessa data para se convencer de que ele ficou à margem das idéias dominantes.
Como explicar esse fenômeno? Obviamente o desmoronamento da União Soviética e das democracias populares o desmoralizou como ideologia legitimando a "ditadura do proletariado", isto é, a fusão do Estado com o partido único, assim como evidenciou a incapacidade de uma economia centralizada para satisfazer as demandas de um capital globalizado tendo por base a tecnologia da informação. Não é à toa que a China pratica hoje um "socialismo de mercado".
Por certo existem outras causas, mas vou me ater apenas ao abandono do princípio que sustentou a afirmação dos dois filósofos franceses: o marxismo confere racionalidade à história porque a emoldura numa única trama.
Em termos grosseiros: o desenvolvimento das forças produtivas teria quebrado o comunismo primitivo, instalado a luta de classes que resultaria na revolução proletária que, por sua vez, emanciparia os seres humanos de suas dilacerações e alienações.
É como se o reino dos fins, que para Kant era o princípio regulador da moral, se encarnasse na própria história, se transformasse num fato revolucionário. Obviamente, estou traçando uma caricatura, pois nem Sartre nem Merleau-Ponty pensaram em termos tão crus. E Marx, como ele mesmo declarava, nunca foi marxista.
Mas a caricatura serve para sublinhar a crença de que as ações humanas poderiam ser enquadradas numa racionalidade dominante, idéia que Sartre continuou a procurar, na "Crítica da Razão Dialética", e da qual Merleau-Ponty começou a duvidar em seus últimos escritos.
Não é possível, dirá ele então, encontrar uma perspectiva capaz de ter uma visão de sobrevôo sobre o mundo e sobre a história. Nem mesmo como princípio regulador, porquanto, sendo o pensamento sempre situado, nunca haverá uma situação que se situe a si mesma. Marx imaginou ser capaz de sair desse impasse, tentando mostrar que a lógica, a racionalidade perversa, do próprio sistema capitalista criaria um ponto de vista teórico e prático, uma crise cujos pólos possuiriam a virtude de encarnar a diferença entre o tudo e o nada.
Com a vitória do tudo, isto é, do proletariado, a totalização da história estaria completa, ou melhor, terminando a pré-história da humanidade e começando a história do ser humano propriamente dita. Mas, quanto mais Marx explicitava a lógica do capital, aprofundava sua crítica da economia política, tanto mais se distanciava desse esquema da totalidade. Nunca conseguiu provar a necessidade racional da crise.
Sob esse aspecto, o próprio Marx teria beirado a eclosão do novo paradigma. Em vez da crise, passam a ter importância as crises, os momentos de reestruturação do capitalismo e a oportunidade de domesticar os mercados. Não é o que hoje está em pauta?
Daí meu desconforto diante daqueles que continuam a pensar a história a partir de um único ponto de vista, aquele da emancipação, por exemplo. Ou ainda aqueles que pensam o socialismo tendo programa definido, quando o próprio Marx ensinou que "comunismo" é uma palavra equívoca, vale dizer, que indica apenas um movimento contrário ao capital, aquelas mudanças permitidas no presente.
Ser socialista passa a significar, então, o esforço de superar a crise do momento, do ponto de vista da liberdade e da justiça social efetivas.


JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito da USP e coordenador da área de filosofia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Escreve na seção "Autores", do Mais! .


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