São Paulo, Domingo, 31 de Outubro de 1999
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MÍDIA

Uma falácia do cinema

GERALDO VELOSO
especial para a Folha

Uma das mais sublimes falácias praticadas no âmbito do cinema é o conceito de "cinema independente". Mas nós todos a praticamos e sabemos muito bem de que se trata esta distinção "metodológica". O cinema independente é aquele praticado fora do âmbito da Motion Pictures americana (que engloba as sete "irmãs" tradicionais e que hoje tem outras marcas complicando esta cabalística cifra -Metro, Warner, Columbia, Fox, United, Universal e Paramount). Mas como esta simplificação muda com a aproximação de uma lente!
O modelo de independência no cinema não envolve o ato de um escritor produzir um texto "pronto", numa relação de intermediação mínima entre o ato de conceber e realizar sua obra. Bom, mas hoje também não é assim. Há escritores que são grifes, escrevem em equipe etc. Como também na Hollywood das "majors" Howard Hawks sempre foi "producer" de filmes dos outros e seus. John Ford muito cedo produziu os seus filmes, mas em conexão com os grandes interesses do "business".
Figuras como Thalberg, Zanuck, Spiegel e outros "tycoons" eram grandes intermediários, avalistas ideológico/estéticos entre as áreas criativas e os interesses dos conglomerados financeiros que suportavam a produção dos Goldwin, Laemmle, Warner etc. Mas a United foi uma iniciativa dos "independentes" (Pickford, Fairbanks, Chaplin, Griffith). Cecil B. de Mille sempre produziu "independentemente" dentro do sistema.
Por outro lado, a independência européia logo foi subvencionada pelos respectivos governos. O General Post Office (o correio inglês, instituição oficial) bancou a experiência documentarista de John Grierson, que depois se transformou em Crown Film Unit e prestou relevantes serviços ao esforço de resistência de guerra do país. Depois da guerra, proliferaram pela Europa os dispositivos estatais de apoio à produção de cinema, sobretudo na França e na Itália (mais neste país, egresso de um regime autoritário que já havia deixado uma hipótese de política de cinema traduzida na implantação do Centro Sperimentale di Cinematografia e da Cinecittà).
A formação do Mercado Comum Europeu, nos anos 50, incentivou a política de co-produções, e França e Itália foram campeãs no uso desse dispositivo. Mas a Itália, tradicional força de produção com presença mundial, apesar de produzir no pós-guerra um cinema de estética programaticamente "pobre", sempre trabalhou com filmes "pensando" no grande mercado: os Estados Unidos. Filmou sempre com atores de língua inglesa (Thomas Millian, Steve Cochran, Ingrid Bergman, Farley Granger, George Sanders e outros), e essa política facilitou a entrada do neo-realismo no mercado americano.
De Laurentis muito cedo se estabeleceu em Hollywood e os anos 60 fizeram a paródia do "western spaghetti" se tornar um fato de mercado, trabalhando a nostalgia dos anos dourados do "western" (que, segundo André Bazin, é o cinema americano por excelência), revelando figuras como Sergio Leone e recuperando a trajetória de estrelas que faziam pontas em Hollywood (Eastwood, Eli Wallach e outros).
As televisões estatais, nos anos 60/70, entraram firmes no papel de fomentadoras da produção cinematográfica. RAI (italiana), ORTF (francesa), os canais públicos alemães, a BBC e em seguida o Chanel Four (ingleses), depois a RTP (portuguesa) e a TVE (espanhola), além das TVs sueca, holandesa e dinamarquesa, viraram produtoras de cinema e revelaram as maiores jóias da realização cinematográfica dos últimos tempos. Mas, em geral, todos acabaram nos braços de Hollywood (de Bertolucci a Frears, de Wenders a Almodóvar). E sempre foi assim.
Mas é assim mesmo. Cinema é briga de cachorro grande. Tem que envolver interesses corporativos. (O que é, afinal, a Motion Pictures? O escritório dessa associação é dentro da Casa Branca e não há nenhuma reunião da Organização Mundial do Comércio em que os interesses da indústria cinematográfica americana não estejam sendo ferrenhamente defendidos pelos delegados do Departamento de Comércio do governo americano. E os Estados Unidos não têm uma política oficial de apoio à sua indústria de cinema? Ora, ora, queridos amigos ingênuos!) E o cinema pode ser independente.
Godard, nos anos 60, pregou o cinema anti-Hollywood/Mosfilm e cometeu alguns gestos coerentemente destruidores (pegou dinheiro da RAI/Italnoleggio e fez "Vento do Leste", um filme iconoclasta que foi recusado pelos patrocinadores, e a BBC já tinha feito o mesmo com seu "British Sounds"). Mas o papo agora é "restaurador". Voltamos a estudar Aristóteles, "commedia dell'arte" e incorporar Shakespeare, Sófocles, Ésquilo, Molière a nossos "softwares" de dramaturgia disponíveis na loja da esquina.
A saturação do conhecimento cinematográfico nos proporciona, como receita de bolo, as "gags" disponíveis na história do cinema, as situações de melodrama plausíveis e por aí afora. O cinema hoje tem de ser "verossímil". Brecht é nome feio, tem de ser estigmatizado. A narratividade descontínua, criando hiatos narrativos para serem preenchidos pela capacidade de leitura ambígua do espectador, está fora de moda. A narrativa cinematográfica tem de ter a obviedade que não deixe ao espectador nenhuma brecha interpretativa. Isso não impede que os filmes tenham "leituras" e sutilezas. O cinema hoje é feito por intelectuais impregnados de intenções.
No momento em que a Motion Pictures se impõe a meta de ocupar 100% das telas do mundo, é extremamente oportuno pensarmos o que, nós da periferia, faremos do cinema. No Brasil o cinema era uma corporação forte quando era um fenômeno da "esquerda", administrado nas pranchetas do poder como um dos fatores de ação política a serem manejados. E a esquerda estava toda contra o regime militar. Mas foi no regime militar que floresceu um dos modelos de projeto de cinematografia nacional mais eficientes. À sombra da Embrafilme de Roberto Farias (na administração de Ney Braga, governo Geisel), o cinema brasileiro provou que era querido por seu público, ocupou um terço de seu mercado e se mostrou industrialmente viável.
O fim da ditadura diluiu a luta política e jogou-nos na arrogância do "meu" discurso sobre o mundo. E onde está a indústria? Não temos a força de criar corporações fortes como a MPAA (Motion Pictures Association of America), e os governos nos jogam no discurso do "mercado rei". E as agências de pesquisa de opinião são, hoje, os grandes consultores estéticos! Mas não foi sempre assim? Os "tycoons" hollywoodianos não falavam diretamente com Deus e diziam de que o público gostava? E tome vaginas fumantes no horário nobre. O inconsciente coletivo é uma garganta voraz que quer ver tudo! O "voyeurismo" é o princípio básico da civilização da mídia moderna.
Vamos pensar sobre tudo isso. O Segundo Panorama Mundial do Cinema Independente de Belo Horizonte está propondo a discussão dessas questões agora, no início de novembro (leia box nesta pág.). Com a palavra os profissionais de mídia, dramaturgia etc.
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Geraldo Veloso é diretor de cinema e produtor cultural; realizou, entre outros, o longa-metragem "Perdidos e Malditos".


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