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MÍDIA
Uma falácia do cinema
GERALDO VELOSO
especial para a Folha
Uma das mais sublimes falácias
praticadas no âmbito do cinema é
o conceito de "cinema independente". Mas nós todos a praticamos e sabemos muito bem de que
se trata esta distinção "metodológica". O cinema independente é
aquele praticado fora do âmbito
da Motion Pictures americana
(que engloba as sete "irmãs" tradicionais e que hoje tem outras
marcas complicando esta cabalística cifra -Metro, Warner, Columbia, Fox, United, Universal e
Paramount). Mas como esta simplificação muda com a aproximação de uma lente!
O modelo de independência no
cinema não envolve o ato de um
escritor produzir um texto "pronto", numa relação de intermediação mínima entre o ato de conceber e realizar sua obra. Bom, mas
hoje também não é assim. Há escritores que são grifes, escrevem
em equipe etc. Como também na
Hollywood das "majors" Howard
Hawks sempre foi "producer" de
filmes dos outros e seus. John
Ford muito cedo produziu os seus
filmes, mas em conexão com os
grandes interesses do "business".
Figuras como Thalberg, Zanuck, Spiegel e outros "tycoons"
eram grandes intermediários,
avalistas ideológico/estéticos entre as áreas criativas e os interesses dos conglomerados financeiros que suportavam a produção
dos Goldwin, Laemmle, Warner
etc. Mas a United foi uma iniciativa dos "independentes" (Pickford, Fairbanks, Chaplin, Griffith). Cecil B. de Mille sempre produziu "independentemente" dentro do sistema.
Por outro lado, a independência
européia logo foi subvencionada
pelos respectivos governos. O General Post Office (o correio inglês,
instituição oficial) bancou a experiência documentarista de John
Grierson, que depois se transformou em Crown Film Unit e prestou relevantes serviços ao esforço
de resistência de guerra do país.
Depois da guerra, proliferaram
pela Europa os dispositivos estatais de apoio à produção de cinema, sobretudo na França e na Itália (mais neste país, egresso de um
regime autoritário que já havia
deixado uma hipótese de política
de cinema traduzida na implantação do Centro Sperimentale di Cinematografia e da Cinecittà).
A formação do Mercado Comum Europeu, nos anos 50, incentivou a política de co-produções, e França e Itália foram campeãs no uso desse dispositivo.
Mas a Itália, tradicional força de
produção com presença mundial,
apesar de produzir no pós-guerra
um cinema de estética programaticamente "pobre", sempre trabalhou com filmes "pensando" no
grande mercado: os Estados Unidos. Filmou sempre com atores
de língua inglesa (Thomas Millian, Steve Cochran, Ingrid Bergman, Farley Granger, George Sanders e outros), e essa política facilitou a entrada do neo-realismo
no mercado americano.
De Laurentis muito cedo se estabeleceu em Hollywood e os
anos 60 fizeram a paródia do
"western spaghetti" se tornar um
fato de mercado, trabalhando a nostalgia
dos anos dourados do "western" (que, segundo André
Bazin, é o cinema americano
por excelência), revelando
figuras como
Sergio Leone e
recuperando a
trajetória de estrelas que faziam pontas
em Hollywood
(Eastwood, Eli
Wallach e outros).
As televisões
estatais, nos
anos 60/70, entraram firmes
no papel de fomentadoras da
produção cinematográfica.
RAI (italiana),
ORTF (francesa), os canais
públicos alemães, a BBC e
em seguida o
Chanel Four
(ingleses), depois a RTP
(portuguesa) e
a TVE (espanhola), além
das TVs sueca,
holandesa e dinamarquesa, viraram produtoras de cinema e revelaram as maiores jóias da realização cinematográfica dos últimos
tempos. Mas, em geral, todos acabaram nos braços de Hollywood
(de Bertolucci a Frears, de Wenders a Almodóvar). E sempre foi
assim.
Mas é assim mesmo. Cinema é
briga de cachorro grande. Tem
que envolver interesses corporativos. (O que é, afinal, a Motion Pictures? O escritório dessa associação é dentro da
Casa Branca e
não há nenhuma reunião da
Organização
Mundial do
Comércio em
que os interesses da indústria cinematográfica americana não estejam sendo ferrenhamente
defendidos pelos delegados
do Departamento de Comércio do governo americano. E os Estados Unidos
não têm uma
política oficial
de apoio à sua
indústria de cinema? Ora,
ora, queridos
amigos ingênuos!) E o cinema pode ser
independente.
Godard, nos
anos 60, pregou o cinema
anti-Hollywood/Mosfilm
e cometeu alguns gestos
coerentemente
destruidores
(pegou dinheiro da RAI/Italnoleggio e fez "Vento do Leste", um filme iconoclasta
que foi recusado pelos patrocinadores, e a BBC já tinha feito o mesmo com seu "British Sounds").
Mas o papo agora é "restaurador". Voltamos a estudar Aristóteles, "commedia dell'arte" e incorporar Shakespeare, Sófocles,
Ésquilo, Molière a nossos "softwares" de dramaturgia disponíveis na loja da esquina.
A saturação do conhecimento
cinematográfico nos proporciona, como receita de bolo, as
"gags" disponíveis na história do
cinema, as situações de melodrama plausíveis e por aí afora. O cinema hoje tem de ser "verossímil". Brecht é nome feio, tem de
ser estigmatizado. A narratividade descontínua, criando hiatos
narrativos para serem preenchidos pela capacidade de leitura
ambígua do espectador, está fora
de moda. A narrativa cinematográfica tem de ter a obviedade que
não deixe ao espectador nenhuma brecha interpretativa. Isso não
impede que os filmes tenham "leituras" e sutilezas. O cinema hoje é
feito por intelectuais impregnados de intenções.
No momento em que a Motion
Pictures se impõe a meta de ocupar 100% das telas do mundo, é
extremamente oportuno pensarmos o que, nós da periferia, faremos do cinema. No Brasil o cinema era uma corporação forte
quando era um fenômeno da "esquerda", administrado nas pranchetas do poder como um dos fatores de ação política a serem manejados. E a esquerda estava toda
contra o regime militar. Mas foi
no regime militar que floresceu
um dos modelos de projeto de cinematografia nacional mais eficientes. À sombra da Embrafilme
de Roberto Farias (na administração de Ney Braga, governo Geisel), o cinema brasileiro provou
que era querido por seu público,
ocupou um terço de seu mercado
e se mostrou industrialmente viável.
O fim da ditadura diluiu a luta
política e jogou-nos na arrogância
do "meu" discurso sobre o mundo. E onde está a indústria? Não
temos a força de criar corporações fortes como a MPAA (Motion Pictures Association of America), e os governos nos jogam no
discurso do "mercado rei". E as
agências de pesquisa de opinião
são, hoje, os grandes consultores
estéticos! Mas não foi sempre assim? Os "tycoons" hollywoodianos não falavam diretamente com
Deus e diziam de que o público
gostava? E tome vaginas fumantes
no horário nobre. O inconsciente
coletivo é uma garganta voraz que
quer ver tudo! O "voyeurismo" é
o princípio básico da civilização
da mídia moderna.
Vamos pensar sobre tudo isso.
O Segundo Panorama Mundial
do Cinema Independente de Belo
Horizonte está propondo a discussão dessas questões agora, no
início de novembro (leia box nesta pág.). Com a palavra os profissionais de mídia, dramaturgia etc.
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Geraldo Veloso é diretor de cinema e produtor cultural; realizou, entre outros, o longa-metragem "Perdidos e Malditos".
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