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PONTO DE FUGA
Um estranho mestre
JORGE COLI
especial para a Folha,
em Nova York
Havia mais de um século que
não se tinha uma retrospectiva
tão importante dos retratos de
Ingres. Ela partiu de Londres,
foi para Washington e, agora,
está em NY. Ingres é o mais
contraditório dos pintores.
Defendia valores eternos, imutáveis e, num certo sentido, retrógrados. Mas, de maneira involuntária, perverteu os princípios clássicos que proclamava e foi essencial para artistas
da modernidade, como Picasso ou Matisse. Quando houve,
em 1911, uma exposição Ingres
em Paris, Degas prestou-lhe
uma homenagem única: já velho e cego, foi ainda assim, para, pelo menos, passar a mão
sobre a superfície das telas do
grande mestre. Ingres estudava obsessivamente cada elemento da imagem, uma parte
do corpo, um objeto. Depois,
recompunha-os num conjunto que resultava esquisito: era
isso que atraía os cubistas. Os
retratos da mostra atual sugerem uma outra ligação, inesperada, entre esses opulentos
personagens do século passado e uma sensibilidade do nosso. A rarefação atmosférica, a
definição extrema, o descompasso sub-reptício entre as coisas e os olhares fixos, insistentes, levam-nos para campos
surrealistas. Um surrealismo
provocado pela forma e não
pela associação desconcertante de objetos heteróclitos. O
Imperador Napoleão, no seu
trono, Carolina Murat, diante
de uma cristalina janela com o
Vesúvio ao fundo, são mais
poeticamente inquietantes e
mais finamente "supra-naturais" do que qualquer Magritte
ou Dalí.
Rostos - Ingres foi o mais célebre retratista de seu tempo.
Sua veneração por Rafael, voluntária e consciente, não esconde um fascínio irresistível
por modelos os mais diversos
da história da arte. Unia "primitivos" flamengos, cujo realismo minucioso o desafiava, e
pintura da Antiguidade, garantia "clássica". Retomava os maneiristas florentinos, fascinado
que era pela elegância desdenhosa de Bronzino. Transfigurou a burguesia enriquecida do
século passado nos desenhos e
óleos monumentais. Os homens, mais raros, são vistos em
roupas escuras, discretas. As
mulheres, imóveis, cristalizadas, surgem como ostentosos e
coloridos ornamentos. Ingres
concedia tanta intensidade formal ao estampado de um vestido, a um leque ou a um vaso,
quanto aos braços, às espáduas, aos rostos. Nessa ausência de hierarquia, nesse universo de eternidades estáticas e
objetivadas, instala-se o descompasso, o bizarro, o desconforto para o olhar. Sua burguesia não é deste mundo; ela pertence a um desconcertante e
singular heroísmo da forma.
Não há pintor tão enigmático
quanto esse mestre, que se
queria conservador, claro e
clássico.
Fichu - Ao receber a exposição dos retratos de Ingres, o
Metropolitan Museum dispôs
uma mostra de roupas equivalentes às usadas pelos modelos
dos quadros. O percurso vai do
início do século passado aos
anos de 1860; são exibidos desde anáguas, toucas e espartilhos com barbatanas de baleia,
até as luxuosas crinolinas e os
vestidos de baile. Eles possuem
uma curiosa vida, contida na
beleza inflada dos tecidos. Todos pertenceram e foram usados por gente de verdade.
Ah, não! - "O Tempo Reencontrado", o filme de Raul
Ruiz inspirado no último volume de "Em Busca do Tempo
Perdido", de Proust, recebeu
elogios entusiásticos da imprensa francesa e americana.
Mas, enfim... Um quebra-cabeças superficial e pretensioso,
confuso, soando falso todo o
tempo; um ator que, para imitar Proust, não pára de tomar a
pose da célebre fotografia do
escritor, com o rosto apoiado
na mão; alguns momentos
"poéticos" francamente
"kitsch": mil vezes melhor foi a
contenção discreta de Schlöndorff, em seu apurado "Um
Amor de Swann".
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com
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