São Paulo, Domingo, 31 de Outubro de 1999
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PONTO DE FUGA

Um estranho mestre


JORGE COLI
especial para a Folha,
em Nova York

Havia mais de um século que não se tinha uma retrospectiva tão importante dos retratos de Ingres. Ela partiu de Londres, foi para Washington e, agora, está em NY. Ingres é o mais contraditório dos pintores. Defendia valores eternos, imutáveis e, num certo sentido, retrógrados. Mas, de maneira involuntária, perverteu os princípios clássicos que proclamava e foi essencial para artistas da modernidade, como Picasso ou Matisse. Quando houve, em 1911, uma exposição Ingres em Paris, Degas prestou-lhe uma homenagem única: já velho e cego, foi ainda assim, para, pelo menos, passar a mão sobre a superfície das telas do grande mestre. Ingres estudava obsessivamente cada elemento da imagem, uma parte do corpo, um objeto. Depois, recompunha-os num conjunto que resultava esquisito: era isso que atraía os cubistas. Os retratos da mostra atual sugerem uma outra ligação, inesperada, entre esses opulentos personagens do século passado e uma sensibilidade do nosso. A rarefação atmosférica, a definição extrema, o descompasso sub-reptício entre as coisas e os olhares fixos, insistentes, levam-nos para campos surrealistas. Um surrealismo provocado pela forma e não pela associação desconcertante de objetos heteróclitos. O Imperador Napoleão, no seu trono, Carolina Murat, diante de uma cristalina janela com o Vesúvio ao fundo, são mais poeticamente inquietantes e mais finamente "supra-naturais" do que qualquer Magritte ou Dalí.

Rostos - Ingres foi o mais célebre retratista de seu tempo. Sua veneração por Rafael, voluntária e consciente, não esconde um fascínio irresistível por modelos os mais diversos da história da arte. Unia "primitivos" flamengos, cujo realismo minucioso o desafiava, e pintura da Antiguidade, garantia "clássica". Retomava os maneiristas florentinos, fascinado que era pela elegância desdenhosa de Bronzino. Transfigurou a burguesia enriquecida do século passado nos desenhos e óleos monumentais. Os homens, mais raros, são vistos em roupas escuras, discretas. As mulheres, imóveis, cristalizadas, surgem como ostentosos e coloridos ornamentos. Ingres concedia tanta intensidade formal ao estampado de um vestido, a um leque ou a um vaso, quanto aos braços, às espáduas, aos rostos. Nessa ausência de hierarquia, nesse universo de eternidades estáticas e objetivadas, instala-se o descompasso, o bizarro, o desconforto para o olhar. Sua burguesia não é deste mundo; ela pertence a um desconcertante e singular heroísmo da forma. Não há pintor tão enigmático quanto esse mestre, que se queria conservador, claro e clássico.

Fichu - Ao receber a exposição dos retratos de Ingres, o Metropolitan Museum dispôs uma mostra de roupas equivalentes às usadas pelos modelos dos quadros. O percurso vai do início do século passado aos anos de 1860; são exibidos desde anáguas, toucas e espartilhos com barbatanas de baleia, até as luxuosas crinolinas e os vestidos de baile. Eles possuem uma curiosa vida, contida na beleza inflada dos tecidos. Todos pertenceram e foram usados por gente de verdade.

Ah, não! - "O Tempo Reencontrado", o filme de Raul Ruiz inspirado no último volume de "Em Busca do Tempo Perdido", de Proust, recebeu elogios entusiásticos da imprensa francesa e americana. Mas, enfim... Um quebra-cabeças superficial e pretensioso, confuso, soando falso todo o tempo; um ator que, para imitar Proust, não pára de tomar a pose da célebre fotografia do escritor, com o rosto apoiado na mão; alguns momentos "poéticos" francamente "kitsch": mil vezes melhor foi a contenção discreta de Schlöndorff, em seu apurado "Um Amor de Swann".


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com


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