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+ política
Criador do "pensamento fraco", o filósofo italiano afirma que o peso da religião
divide as duas sociedades ocidentais e diz que a democracia não funciona mais
A barricada Europa e a fortaleza EUA - Gianni Vattimo
Enric González
do "El País"
Gianni Vattimo é um dos mais renomados filósofos europeus. Defensor do chamado "pensiero
debole" -ou "pensamento fraco", traduzível
como a debilitação das categorias ontológicas da
metafísica-, ele considera que a emancipação humana
passa pela superação dos dogmatismos, da estratificação
social e da violência. Autor de "O Fim da Modernidade"
(Martins Fontes) e "Depois da Cristandade" (Record), ele
tem entre seus interesses a religião e a política e era, até
poucos meses atrás, eurodeputado no Parlamento de Estrasburgo pelo Partido dos Democratas de Esquerda (DS).
Na entrevista abaixo, realizada em sua sala na Faculdade
de Filosofia da Universidade de Turim, ele propõe, entre
outras idéias provocadoras, a necessidade de evitar uma
permanente guerra entre culturas. Mas se declara pessimista. "Vejo coisas aterrorizantes no horizonte."
Atualmente, a economia mundial parece funcionar de forma autônoma, enquanto a política fracassa.
O fato é que a economia se globalizou
muito rapidamente, e, a política, não. A
economia faz mal em se globalizar? Ou
faz mal a política em não acompanhá-la? Penso que a globalização é um fenômeno estritamente econômico, e não
me parece uma boa idéia aspirar a um
sistema político mundial. Até pouco
tempo atrás, a tendência à globalização
me parecia inevitável; agora me parece
menos. Na realidade, já existe algo semelhante a um poder político planetário, o do império
americano. O problema é que muitos não gostam dele.
Qualquer tipo de governo universal estimula a saudade da diferença, o que é muito razoável. A unidade do
planeta só faria sentido se sofrêssemos um ataque de
marcianos ou coisa que o valha. Não considero interessante a existência de um sistema político global nem
para corrigir os desequilíbrios da economia nem para
coisa nenhuma.
E não há nada a fazer?
No futuro previsível, parece claro que, ganhando George W. Bush [republicano] ou John Kerry [democrata],
o Ocidente será obrigado a se disciplinar para defender
seus privilégios ou para conservar a maior parte deles
perante o resto do mundo. Claro que não desejo que essa espécie de guerra mundial já em curso seja vencida
pelo terrorismo islâmico. Idealmente, o mais apropriado seria que todos, Ocidente e os outros, demonstrassem um pouco de inteligência e trabalhassem para conseguir uma paulatina aproximação.
O sr. defendeu o "pensamento fraco" como um marco elástico das democracias avançadas. Porém assistimos ao retorno de conceitos que não têm muito de pensamento, mas
que são certamente fortes: Deus, religião, pátria, tradição.
A filosofia se viu obrigada a rever muitos de seus dogmas. A idéia de que existe uma única humanidade, por
exemplo, é hoje insustentável. Existem várias humanidades em confronto. Eu sou ferrenhamente pró-ocidental, gosto de viver na minha civilização, em um país
livre, democrático e próspero. Mas tenho consciência
de que defender minha civilização a todo custo me leva
a uma guerra permanente que não posso aceitar.
Como filósofo, acredito na compartimentação do
mundo. Não me refiro a um apartheid, mas a respeitar
compartimentos que se comuniquem sem invasão e
permitam o desenvolvimento autônomo das culturas.
No momento, eu me divido entre a esperança de que
ocorra algo decisivo, capaz de mudar as coisas sem que
se chegue a uma guerra total, e o temor de que isso não
ocorra. E então desemboquemos na outra alternativa: a
guerra permanente preconizada por George W. Bush, a
defesa dos nossos privilégios pelas armas e a todo custo. Vejo coisas aterrorizantes no horizonte.
Que partido o sr. toma no Iraque?
Dizem que, se as tropas de ocupação abandonassem o
país, ele viraria uma república islâmica,
depois de um confronto entre sunitas e
xiitas que está em suspenso porque os
dois lados têm nos estrangeiros um inimigo comum. Tudo isso é bem provável.
Agora é inútil insistir em que muitos de
nós avisamos que a guerra era uma péssima idéia. O que se fez está feito. Devemos
pensar em termos de mal menor: talvez
uma retirada norte-americana num prazo de um ou dois anos, talvez o envio de
tropas egípcias, marroquinas e de outros países árabes.
Na hipótese mais pessimista, seria tão impensável assim uma república islâmica? Acho que, se a atitude ocidental fosse menos belicosa, as coisas mudariam. O
equilíbrio nuclear da Guerra Fria era terrível, mas o holocausto não ocorreu. O equilíbrio é possível.
Um equilíbrio entre o Ocidente e o islã fundamentalista?
Não, não. Um equilíbrio multipolar e sem os grandes
arsenais atômicos da Guerra Fria. A Europa deveria se
tornar uma potência alternativa aos EUA. Alternativa,
não inimiga. Se continuarmos no mesmo bloco que os
EUA e Israel, seremos condenados a seguir o caminho
da guerra permanente. EUA e Israel são sociedades nas
quais a religião tem grande peso, sentem-se nações justas e mais ou menos eleitas por Deus. A Europa é mais
laica, menos fundamentalista, mais cética, e diante de
uma situação tão grave deve se rebelar, buscar alternativas. Se não as encontrarmos, seria bom todos os europeus já irem comprando um fuzil.
Mas o que o sr. propõe é que uma Europa sem poder militar
dificilmente constituiria uma alternativa para quem quer
que fosse.
Acredito no fortalecimento da Europa, ainda que se tenha de criar um exército europeu e investir grandes somas na indústria armamentista.
Mas um exército é impossível sem um poder político forte e
claro acima dele.
De fato, um poder que não existe na União Européia. E
que a Constituição em via de ser aprovada veda por décadas. Daí meu pessimismo. O Parlamento europeu é
sinceramente europeísta, e aí incluo o bloco conservador. Mas a comissão e os governos não são. Preferem
uma Europa fraca.
Todos os governos europeus foram eleitos democraticamente e se entende que defendem os interesses de seus
eleitores.
A democracia tal como a praticamos já não funciona.
Transformou-se em um sistema que idiotiza as pessoas
para criar consensos favoráveis às classes governantes.
Voltemos às provocações: o direito de voto deve ser
universal e incondicional? Se, para dirigir um automóvel, são exigidas tantas horas de auto-escola, passar por
um teste e tirar uma carteira, não faria falta algo parecido para votar? Os estrangeiros que aspiram à cidadania
americana devem submeter-se a um pequeno exame
sobre os valores constitucionais que regem o país, e talvez fosse conveniente impor algo parecido aos eleitores. Do contrário, caminhamos para um sistema regido
pelas pesquisas eleitorais e pelas verbas publicitárias.
No atual estado de coisas, duvido que escolher nossos
governantes por um simples sorteio desse piores resultados. Pelo menos, o sorteio garantiria uma certa variedade nos Parlamentos e uma menor presença de milionários na política.
Tradução de Sergio Molina.
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