São Paulo, domingo, 31 de outubro de 2004

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+ política

Criador do "pensamento fraco", o filósofo italiano afirma que o peso da religião divide as duas sociedades ocidentais e diz que a democracia não funciona mais

A barricada Europa e a fortaleza EUA - Gianni Vattimo

Enric González
do "El País"

Gianni Vattimo é um dos mais renomados filósofos europeus. Defensor do chamado "pensiero debole" -ou "pensamento fraco", traduzível como a debilitação das categorias ontológicas da metafísica-, ele considera que a emancipação humana passa pela superação dos dogmatismos, da estratificação social e da violência. Autor de "O Fim da Modernidade" (Martins Fontes) e "Depois da Cristandade" (Record), ele tem entre seus interesses a religião e a política e era, até poucos meses atrás, eurodeputado no Parlamento de Estrasburgo pelo Partido dos Democratas de Esquerda (DS).
Na entrevista abaixo, realizada em sua sala na Faculdade de Filosofia da Universidade de Turim, ele propõe, entre outras idéias provocadoras, a necessidade de evitar uma permanente guerra entre culturas. Mas se declara pessimista. "Vejo coisas aterrorizantes no horizonte."
 

Atualmente, a economia mundial parece funcionar de forma autônoma, enquanto a política fracassa.
O fato é que a economia se globalizou muito rapidamente, e, a política, não. A economia faz mal em se globalizar? Ou faz mal a política em não acompanhá-la? Penso que a globalização é um fenômeno estritamente econômico, e não me parece uma boa idéia aspirar a um sistema político mundial. Até pouco tempo atrás, a tendência à globalização me parecia inevitável; agora me parece menos. Na realidade, já existe algo semelhante a um poder político planetário, o do império americano. O problema é que muitos não gostam dele.
Qualquer tipo de governo universal estimula a saudade da diferença, o que é muito razoável. A unidade do planeta só faria sentido se sofrêssemos um ataque de marcianos ou coisa que o valha. Não considero interessante a existência de um sistema político global nem para corrigir os desequilíbrios da economia nem para coisa nenhuma.

E não há nada a fazer?
No futuro previsível, parece claro que, ganhando George W. Bush [republicano] ou John Kerry [democrata], o Ocidente será obrigado a se disciplinar para defender seus privilégios ou para conservar a maior parte deles perante o resto do mundo. Claro que não desejo que essa espécie de guerra mundial já em curso seja vencida pelo terrorismo islâmico. Idealmente, o mais apropriado seria que todos, Ocidente e os outros, demonstrassem um pouco de inteligência e trabalhassem para conseguir uma paulatina aproximação.

O sr. defendeu o "pensamento fraco" como um marco elástico das democracias avançadas. Porém assistimos ao retorno de conceitos que não têm muito de pensamento, mas que são certamente fortes: Deus, religião, pátria, tradição.
A filosofia se viu obrigada a rever muitos de seus dogmas. A idéia de que existe uma única humanidade, por exemplo, é hoje insustentável. Existem várias humanidades em confronto. Eu sou ferrenhamente pró-ocidental, gosto de viver na minha civilização, em um país livre, democrático e próspero. Mas tenho consciência de que defender minha civilização a todo custo me leva a uma guerra permanente que não posso aceitar.
Como filósofo, acredito na compartimentação do mundo. Não me refiro a um apartheid, mas a respeitar compartimentos que se comuniquem sem invasão e permitam o desenvolvimento autônomo das culturas. No momento, eu me divido entre a esperança de que ocorra algo decisivo, capaz de mudar as coisas sem que se chegue a uma guerra total, e o temor de que isso não ocorra. E então desemboquemos na outra alternativa: a guerra permanente preconizada por George W. Bush, a defesa dos nossos privilégios pelas armas e a todo custo. Vejo coisas aterrorizantes no horizonte.

Que partido o sr. toma no Iraque?
Dizem que, se as tropas de ocupação abandonassem o país, ele viraria uma república islâmica, depois de um confronto entre sunitas e xiitas que está em suspenso porque os dois lados têm nos estrangeiros um inimigo comum. Tudo isso é bem provável. Agora é inútil insistir em que muitos de nós avisamos que a guerra era uma péssima idéia. O que se fez está feito. Devemos pensar em termos de mal menor: talvez uma retirada norte-americana num prazo de um ou dois anos, talvez o envio de tropas egípcias, marroquinas e de outros países árabes.
Na hipótese mais pessimista, seria tão impensável assim uma república islâmica? Acho que, se a atitude ocidental fosse menos belicosa, as coisas mudariam. O equilíbrio nuclear da Guerra Fria era terrível, mas o holocausto não ocorreu. O equilíbrio é possível.

Um equilíbrio entre o Ocidente e o islã fundamentalista?
Não, não. Um equilíbrio multipolar e sem os grandes arsenais atômicos da Guerra Fria. A Europa deveria se tornar uma potência alternativa aos EUA. Alternativa, não inimiga. Se continuarmos no mesmo bloco que os EUA e Israel, seremos condenados a seguir o caminho da guerra permanente. EUA e Israel são sociedades nas quais a religião tem grande peso, sentem-se nações justas e mais ou menos eleitas por Deus. A Europa é mais laica, menos fundamentalista, mais cética, e diante de uma situação tão grave deve se rebelar, buscar alternativas. Se não as encontrarmos, seria bom todos os europeus já irem comprando um fuzil.

Mas o que o sr. propõe é que uma Europa sem poder militar dificilmente constituiria uma alternativa para quem quer que fosse.
Acredito no fortalecimento da Europa, ainda que se tenha de criar um exército europeu e investir grandes somas na indústria armamentista.

Mas um exército é impossível sem um poder político forte e claro acima dele.
De fato, um poder que não existe na União Européia. E que a Constituição em via de ser aprovada veda por décadas. Daí meu pessimismo. O Parlamento europeu é sinceramente europeísta, e aí incluo o bloco conservador. Mas a comissão e os governos não são. Preferem uma Europa fraca.

Todos os governos europeus foram eleitos democraticamente e se entende que defendem os interesses de seus eleitores.
A democracia tal como a praticamos já não funciona. Transformou-se em um sistema que idiotiza as pessoas para criar consensos favoráveis às classes governantes.
Voltemos às provocações: o direito de voto deve ser universal e incondicional? Se, para dirigir um automóvel, são exigidas tantas horas de auto-escola, passar por um teste e tirar uma carteira, não faria falta algo parecido para votar? Os estrangeiros que aspiram à cidadania americana devem submeter-se a um pequeno exame sobre os valores constitucionais que regem o país, e talvez fosse conveniente impor algo parecido aos eleitores. Do contrário, caminhamos para um sistema regido pelas pesquisas eleitorais e pelas verbas publicitárias.
No atual estado de coisas, duvido que escolher nossos governantes por um simples sorteio desse piores resultados. Pelo menos, o sorteio garantiria uma certa variedade nos Parlamentos e uma menor presença de milionários na política.


Tradução de Sergio Molina.


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