São Paulo, domingo, 31 de outubro de 2004

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OS SONHADORES

PARA O AUTOR DE "OS NUS E OS MORTOS", CONSCIÊNCIA NACIONAL DOS EUA CHEGA À ELEIÇÃO PRESIDENCIAL ATORMENTADA PELO PARADOXO DE AMAR JESUS AOS DOMINGOS E CORRER ATRÁS DE DINHEIRO NO RESTO DA SEMANA

por Norman Mailer

Há pouco tempo da eleição, estou desanimado. A declaração de Kerry de que teria votado a favor da guerra, mesmo que à época soubesse o que sabe hoje, não melhorou suas chances. Havia uma lógica eleitoral para mover-se para o centro, mas Kerry deu uma tacada longa demais e perdeu a vantagem. De qualquer modo, ele não perdeu a lealdade daqueles que votarão nele -livrar os Estados Unidos de George W. Bush é sua premissa-, mas desperdiçou uma grande quantidade de energia de campanha. Um movimento que pretende penetrar as fortificações de um adversário bem entrincheirado exige fidelidade ardente a seu general. Kerry apagou muitas fogueiras. Uma vitória de Bush pode ser vista como uma das ironias inesquecíveis dos EUA. Não há necessidade de falar novamente sobre as falsidades, manipulações e a mediocridade espiritual dos anos pós-11 de Setembro; chegou a hora de recuperar-se do choque de que um histórico tão horrível (e uma recusa tão completa em encarar esse histórico) pareceria verossímil. Quem, afinal, somos nós? Em que tipo de Estado está o povo americano? Uma rápida olhada para os astros de cinema dá uma pista. A esquerda liberal tem estado ligada a atores como Warren Beatty e Jack Nicholson. Eles falaram ao nosso cinismo e ao nosso idealismo frustrado. Mas o centro americano transferiu sua lealdade da decência de Gary Cooper para a coragem e auto-aprovação de John Wayne. Agora temos a apoteose de Arnold Schwarzenegger. Ele conquistou as honras da convenção [republicana] enquanto informava à América, por meio da fisicidade de sua presença, que, se um dia a nação atingir um momento desesperado a ponto de precisar de um ditador, bem, Deus não permita, ele oferece o melhor queixo que já apareceu desde Benito Mussolini. O queixo agora está pronto para substituir as interpretações.

País inseguro
Em 1983, nos primeiros anos das interpretações, 240 fuzileiros navais foram mortos por uma explosão terrorista em Beirute. Dois dias depois, em 23 de outubro, Reagan desembarcou 1.200 fuzileiros em Granada, que fica a 5.000 km de Beirute. Quando a força invasora chegou a 7.000 fuzileiros, a campanha estava terminada. Os EUA perderam 19 soldados, enquanto 49 do Exército granadino morreram do outro lado assim como 29 operários da construção cubanos. O comunismo no Caribe estava "kaput", exceto pela pequena questão de Castro e Cuba.
Depois dessa vitória instantânea contra um Exército esfarrapado, Reagan estava suficientemente estimulado para afirmar que os Estados Unidos tinham posto fim à nossa vergonha no Vietnã. Reagan entendeu o que os americanos queriam. Interpretações. Para eles era mais importante ouvir que eram saudáveis do que ser saudáveis.
Bush e [Karl] Rove [principal assessor político de Bush] ampliaram essa visão em ordem de magnitude. Eles atuaram sobre a premissa de que a América estava prodigiosamente insegura. Como império, somos novos-ricos. Como todos os novos-ricos, desejamos superar a instabilidade implícita nessa condição ganhando muito dinheiro.
A coisa mais triste a dizer sobre os EUA, enquanto rumamos para o fascismo (que poderá ser nosso destino, se mergulharmos numa depressão grave ou sofrermos uma série de catástrofes terroristas), é que esperamos desastres. Nós os aguardamos. Tornamo-nos uma nação culpada. Em algum lugar na confusão da consciência nacional está a compreensão de que fomos apanhados no paradoxo de amar Jesus aos domingos, enquanto corremos atrás de muito dinheiro no resto da semana. Como poderíamos não precisar de alguém para nos dizer que somos bons e puros e que ele tentará nos tornar seguros? Para Bush-e-Rove, o 11 de Setembro foi o pote de ouro.
A Presidência é um papel, e George, por sua própria conta, poderia ter sido um ator de cinema de sucesso. A tarefa de Kerry agora é arrasar o machismo canastrão de Bush. Kerry precisa dominar Bush sem olhar para seus conselheiros pombas -"Não seja visto como cruel, John, ou perderá as mulheres!". Ao contrário: Kerry precisa conquistar os homens. Ele precisa chamar Bush para a briga em público. Ele precisa conseguir arrasar o sorriso de comedor de excrementos de Bush e apresentar-se como a alternativa legítima -um herói cuja reputação foi manchada por um desertor. E isso não será fácil. Bush é melhor ator. Ele vem interpretando um homem mais masculino que ele mesmo há vários anos.
Kerry precisa convencer uma nova parte do público de que seu adversário é um fracote de armário que usa a inflexibilidade como forma de mostrar ao país que é forte. O apelo de Bush, afinal, é ser tolo. Eles também são inflexíveis -eles também sabem que afirmar a própria tolice pode se tornar uma espécie de força, desde que você nunca mude de opinião.
Nesta era de ironias terríveis, a mais impalatável talvez tenha sido a de termos depositado nossas esperanças em uma série de confrontos televisivos cuja história anterior nunca oferecera mais que algumas declarações para os concorrentes e apnéia para o espectador. Deus abençoe a América! Talvez não mereçamos isso, mas poderíamos usar a ajuda do Senhor. A principal certeza de Bush, afinal, é a de que o diabo não o abandonará em seu momento de necessidade. Seu único erro é achar que é Jeová quem está lhe falando.


Reproduzido com permissão da Wylie Agency. Copyright: Norman Mailer.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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