São Paulo, domingo, 31 de outubro de 2004

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UM CURTO-CIRCUITO IDEOLÓGICO

CLASSES MÉDIA E ALTA SE AFIRMAM SOBRE AS CLASSES BAIXAS POR MEIO DA DEFESA INTRANSIGENTE DA TOLERÂNCIA, COMO NA OPOSIÇÃO ENTRE DEMOCRATAS E REPUBLICANOS NOS EUA

por Slavoj Zizek

A visão enigmática de um suicídio coletivo em grande escala sempre é fascinante -haja visto as centenas de seguidores da seita de Jim Jones que, obedientemente, tomaram veneno em seu acampamento na Guiana [em 1978, deixando um total de 914 mortos]. A mesma coisa está acontecendo hoje, no Kansas [EUA], na área da vida econômica, e é esse o tema do novo e notável livro de Thomas Frank [jornalista nascido em Kansas City], "What's the Matter with Kansas?" [Qual É o Problema com o Kansas? - Como os Conservadores Conquistaram o Coração da América", ed. Metropolitan Books, 320 págs., US$ 24]. Seu estilo simples não deve desviar nossa atenção de sua análise política aguçada. Centrando sua atenção no Kansas, que está à base do levante conservador populista, Frank descreve de maneira apta o paradoxo básico de sua construção ideológica: a brecha, a ausência de qualquer elo cognitivo, entre interesses econômicos e questões "morais". Se alguma vez já existiu um livro que precisasse ser lido por qualquer pessoa interessada nos estranhos meandros da política conservadora contemporânea, esse livro é "Qual É o Problema com o Kansas?". O que acontece quando a oposição econômica de classe (agricultores pobres e operários contra advogados, banqueiros, grandes empresas) é transposta e codificada para transformar-se na oposição entre americanos verdadeiros, cristãos, honestos e trabalhadores, de um lado, e, de outro, os liberais decadentes que tomam "latte", têm carros estrangeiros, defendem o aborto e o homossexualismo, zombam do sacrifício patriótico e do modo de vida simples e "provinciano"? O inimigo é visto como o "liberal", que, por meio de intervenções estatais federais (desde a integração racial forçada de alunos em ônibus escolares até a obrigatoriedade do ensino da evolução darwiniana e de práticas sexuais perversas), quer solapar o modo de vida autenticamente americano.

A grande ironia
Assim, o principal interesse econômico consiste em nos livrarmos do Estado forte que cobra impostos da população trabalhadora para poder financiar suas intervenções regulamentadoras. Desse modo, o programa econômico mínimo passa a ser "menos impostos, menos regulamentação". Mesmo do ponto de vista padronizado da busca racional e esclarecida dos interesses próprios, a inconsistência dessa postura ideológica é evidente: os populistas conservadores estão literalmente promovendo o descalabro econômico por meio de seu voto. Desregulamentação e menos impostos significam mais liberdade para as grandes empresas que estão levando os agricultores empobrecidos à falência; menos intervenção federal significa menos assistência federal aos pequenos agricultores etc. Na visão dos populistas evangélicos americanos, o Estado representa um poder que lhes é estranho e, juntamente com a ONU, é agente do anticristo, na medida em que arrebata a liberdade do crente cristão, roubando dele a responsabilidade moral pelo cuidado com seu próprio sustento, e, com isso, solapa a moral individualista que faz de cada um de nós o arquiteto de nossa própria salvação. Como coadunar essa idéia com a explosão inusitada do aparelho estatal sob a Presidência de George W. Bush? Não surpreende que as grandes empresas fiquem felicíssimas em aceitar tais ataques evangélicos contra o Estado, quando o Estado procura regulamentar fusões de mídia, impor restrições às empresas de energia, fortalecer as normas sobre a poluição do ar, proteger a flora e a fauna, limitar a extração de madeira em parques nacionais etc. Em última análise, a grande ironia da história é o fato de o individualismo radical servir como justificativa ideológica do poder irrestrito daquilo que a grande maioria dos indivíduos vivencia como um poder anônimo e vasto que, sem ser sujeito a qualquer controle público democrático, regulamenta suas vidas. Quanto ao aspecto ideológico da luta, Frank afirma o óbvio, que, não obstante, precisa ser dito: os populistas estão travando uma guerra que "não pode ser vencida". Se os republicanos de fato proibissem o aborto, se proibissem o ensino da evolução, se impusessem regulamentação federal a Hollywood e à cultura de massa, isso levaria não apenas à sua derrota ideológica imediata mas também a uma depressão econômica de grande escala nos EUA. Assim, o resultado é uma simbiose debilitante: embora a classe dominante discorde da agenda moral populista, ela tolera sua "guerra moral" como meio de manter as classes mais baixas refreadas, ou seja, de fazer com que elas possam expressar sua fúria sem perturbar os interesses econômicos dela (da classe dominante). O que isso significa é que a guerra cultural é guerra de classes em modo deslocado. O que desmente aqueles que afirmam que vivemos numa sociedade pós-classes sociais. Isso, entretanto, apenas torna o enigma ainda mais impenetrável: como é "possível" esse deslocamento? "Burrice" e "manipulação ideológica" não constituem resposta -ou seja, está claro que não basta dizer que as primitivas classes mais baixas sofrem a lavagem cerebral de seus aparelhos ideológicos, a ponto de se tornarem incapazes de identificar seus verdadeiros interesses.

Cultura como conceito-chave
Vale recordar, pelo menos, que, décadas atrás, o mesmo Kansas era reduto do populismo "progressista" nos EUA -e as pessoas não emburreceram nas últimas décadas. Tampouco basta propor a chamada "solução Laclau": não existe elo "natural" entre uma dada posição socioeconômica e a ideologia a ela ligada; logo, não faz sentido falar em "logro" e "consciência falsa", como se houvesse um padrão de consciência ideológica "apropriada" inscrita na situação socioeconômica muito "objetiva"; cada construção ideológica é fruto de uma luta hegemônica para estabelecer/impor uma cadeia de equivalências, luta essa cujo desenlace é profundamente contingente, não garantido por qualquer referência externa como "posição socioeconômica objetiva". A primeira coisa a observar aqui é que são necessárias duas partes para travar uma guerra cultural: a cultura é também o tópico ideológico dominante dos liberais "esclarecidos" cuja política é focalizada sobre a luta contra o sexismo, o racismo e o fundamentalismo e voltada em favor da tolerância multicultural. Assim, a pergunta-chave é: por que a "cultura" está emergindo como nossa categoria central de vida-mundo? Hoje em dia nós não "cremos realmente" mais, apenas observamos (alguns dos) rituais e costumes religiosos em sinal de respeito pelo "estilo de vida" da comunidade à qual pertencemos (judeus não-crentes obedecendo às normas "kasher" "em sinal de respeito à tradição" etc.). "Eu não creio realmente nisso -isso e apenas parte de minha cultura" parece, de fato, ter se tornado o modo predominante da característica de negação ou crença deslocada que é própria de nossos tempos. Embora não acreditemos em Papai Noel, a cada dezembro há uma árvore de Natal em todas as casas e mesmo em todos os locais públicos. "Cultura" é o nome que damos a todas aquelas coisas que praticamos sem acreditar realmente nelas, sem "levá-las a sério". A segunda coisa a observar é como, ao mesmo tempo em que declaram sua solidariedade para com os pobres, os liberais codificam a guerra cultural com uma mensagem de classes oposta: com grande freqüência, sua luta pela tolerância multicultural e os direitos das mulheres marca a posição oposta aos alegados fundamentalismo, intolerância e sexismo patriarcal das "classes mais baixas".

Termos mediadores
Para desfazer o nó dessa confusão é preciso focalizar os termos mediadores cuja função é confundir as verdadeiras linhas divisórias. A maneira como a "modernização" vem sendo utilizada na ofensiva ideológica recente é exemplar a esse respeito: primeiro, é erguida uma oposição abstrata entre "modernizadores" (aqueles que endossam o capitalismo global sob todos os seus aspectos, desde o econômico até o cultural) e "tradicionalistas" (os que resistem à globalização). Em seguida, são atirados nessa categoria daqueles que resistem todos desde os conservadores tradicionais e a direita populista até a chamada "velha esquerda" (cujos proponentes continuem a defender o Estado de Bem-Estar Social, o movimento sindical etc.).
É claro que essa categorização não abrange um aspecto da realidade social: basta recordar a coalizão de Igreja e movimento sindical que, na Alemanha, no início de 2003, impediu a legalização da abertura do comércio aos domingos. Entretanto não basta dizer que essa "diferença cultural" atravessa o campo social inteiro, passando sobre estratos e classes distintos; não basta dizer que essa oposição pode ser combinada de maneiras distintas com outras oposições (para que possamos ter uma resistência conservadora, defensora dos "valores tradicionais", contra a "modernização" capitalista global, ou, então, conservadores morais que ratificam plenamente a globalização capitalista). O fracasso da "modernização" em funcionar como chave à totalidade social significa que ela é um conceito universal "abstrato", e a aposta do marxismo é que existe um antagonismo (a chamada "luta de classes") que passa por cima de todos os outros e, desse modo, atua como "universal concreto" do campo inteiro. A luta feminista pode ser inserida numa cadeia ao lado da luta pela emancipação social das classes mais baixas ou então pode funcionar (e, de fato, funciona) como ferramenta ideológica das classes médias e altas para afirmar sua superioridade sobre as classes mais baixas, "patriarcais e intolerantes". O próprio antagonismo de classes é "duplamente inscrito" aqui, por assim dizer: é a constelação específica da própria luta de classes que explica por que a luta feminista foi apropriada pelas classes mais altas (o mesmo se aplica ao racismo: é a própria dinâmica da luta de classes que explica por que o racismo direto é forte entre os trabalhadores brancos de classe mais baixa). A terceira coisa que vale observar é a diferença fundamental entre a luta feminista/anti-racista/anti-sexista e a luta de classes: no primeiro caso, a meta é traduzir o antagonismo em diferença (convivência "pacífica" de sexos, religiões e grupos étnicos), enquanto a meta da luta de classes é precisamente o contrário, ou seja, "agravar" a diferença de classes de modo a que ela se transforme em antagonismo de classes. Assim, o que a série raça-gênero-classe social obscurece é a lógica diferente do espaço político no caso de classe: onde a luta anti-racista e anti-sexista é guiada pela busca do reconhecimento pleno do outro, a luta de classes visa a derrubar e dominar, até mesmo exterminar, o outro -mesmo que não seja por meio de uma aniquilação física direta, a luta de classes visa aniquilar o papel e a função sociopolíticos do outro. Em outras palavras, embora seja lógico dizer que o anti-racismo quer que todas as raças possam afirmar e defender livremente suas aspirações culturais, políticas e econômicas, é evidentemente sem sentido afirmar que o objetivo da luta de classes proletária é permitir que a burguesia afirme plenamente sua própria identidade, suas próprias lutas. Em um dos casos, temos uma lógica "horizontal" do reconhecimento de diferentes identidades, e, no outro, temos a lógica da luta contra um antagonista.


Nos EUA, os papéis tradicionais estão invertidos: os republicanos gastam dinheiro do Estado, os democratas adotam uma política fiscal dura


O paradoxo aqui é que é o fundamentalismo populista retém essa lógica do antagonismo, enquanto a esquerda liberal segue a lógica do reconhecimento das diferenças, do "desativar" dos antagonismos, convertendo-os em diferenças que convivem. Em sua própria forma, as campanhas populistas-conservadoras das bases assumiram a antiga postura radical esquerdista da mobilização e luta popular contra a exploração da classe alta. Essa inversão inesperada é apenas uma em uma série longa. Nos EUA de hoje, os papéis tradicionais de republicanos e democratas estão quase invertidos: os republicanos gastam dinheiro do Estado, com isso gerando um déficit orçamentário recorde; eles constroem, na prática, um Estado federal forte e implementam uma política de intervencionismo global. Enquanto isso, os democratas implementam uma política fiscal dura que, sob a presidência Clinton, zerou o déficit orçamentário.

Agenda dúbia
Mesmo no âmbito sensível da política socioeconômica, os democratas (e o mesmo pode ser dito de Blair no Reino Unido), via de regra, implementam a agenda neoliberal de abolir o Estado de Bem-Estar Social, reduzir os impostos, privatizar etc., enquanto Bush propôs uma medida radical para legalizar o estatuto de milhões de trabalhadores mexicanos ilegais e tornou a saúde muito mais acessível aos aposentados. O caso extremo aqui é o dos grupos "sobrevivencialistas" no Oeste dos EUA: embora sua mensagem ideológica seja uma de racismo religioso, sua organização (em pequenos grupos ilegais que combatem o FMI e outros organismos federais) remete estranhamente aos Panteras Negras dos anos 1960.
Assim, devemos rejeitar não apenas o desprezo liberal fácil pelos fundamentalistas populistas (ou, ainda pior, a atitude paternalista de lamentar o quanto eles são "manipulados") -devemos rejeitar os próprios termos da guerra cultural. Embora, é claro, no que diz respeito ao conteúdo positivo da maioria das questões discutidas, um esquerdista radical deva apoiar a posição liberal (em favor do aborto, contra o racismo e a homofobia etc.), não devemos nunca esquecer que, a longo prazo, é o fundamentalista populista que é nosso aliado, não o liberal.
Apesar de toda sua raiva, os populistas "não têm raiva suficiente" -não são radicais o bastante para se darem conta do vínculo entre capitalismo e a decadência moral que eles deploram. Vale recordar o infame lamento de Robert Bork [juiz que teve a nomeação à Suprema Corte dos EUA rejeitada pelos democratas, em 1987, devido a posições ultraconservadoras] pelo fato de estarmos "deslizando indolentemente em direção a Gomorra": "A indústria do entretenimento não está forçando a depravação goela abaixo do público americano resistente. A demanda por decadência está presente. Esse fato não desculpa aqueles que vendem tais materiais degradantes, não mais do que a demanda por crack desculpa a ação do traficante. Mas precisamos recordar que a culpa está em nós mesmos, na natureza humana não restrita por forças externas".
Em que, exatamente, então, essa demanda se alicerça? Aqui Bork efetua seu curto-circuito ideológico: em lugar de apontar para a lógica do próprio capitalismo, que, para sustentar sua reprodução e expansão, precisa criar cada vez mais novas demandas -com isso admitindo que, ao combater a "decadência" consumista, ele está combatendo uma tendência que insiste no próprio cerne do capitalismo-, ele se refere diretamente à "natureza humana", que, deixada por conta própria, acaba desejando a depravação e, assim, precisa de controle e censura constantes: "A idéia de que os homens são criaturas naturalmente racionais e morais, que não precisam de limites externos fortes, foi desmentida pela experiência. Existe um mercado crescente e ansioso por depravação e indústrias rentáveis que se dedicam a suprir essa demanda".
Entretanto essa visão cria uma dificuldade para a cruzada "moral" dos guerreiros frios contra o comunismo, já que os regimes comunistas do Leste Europeu foram derrubados pelos três grandes adversários do conservadorismo: a cultura jovem, os intelectuais da geração dos anos 1960 e os trabalhadores que continuavam a acreditar na solidariedade contra o individualismo. Esse elemento retorna para assombrar Bork: em uma conferência, ele se "referiu, em tons não aprovadores, à performance de Michael Jackson no Super Bowl, quando o artista agarrou a própria virilha. Outro palestrante me informou pontualmente que foi precisamente o desejo de desfrutar manifestações da cultura americana, como essa, que fez o Muro de Berlim vir abaixo. Isso parece um argumento tão bom quanto qualquer outro para se reerguer o muro". Embora Bork tenha consciência da ironia da situação, fica evidente que não captou seu aspecto mais profundo.
Recordemos a definição feita por Jacques Lacan de uma comunicação bem-sucedida: eu recebo de volta do outro minha própria mensagem em sua forma invertida (verdadeira). Não é isso o que está acontecendo com os liberais de hoje? Eles não estão recebendo de volta dos populistas conservadores sua própria mensagem em sua forma invertida/verdadeira? Em outras palavras, os populistas conservadores não seriam o sintoma dos liberais esclarecidos tolerantes? Não será o caipira assustado e ridículo do Kansas que explode em fúria contra a corrupção liberal a própria figura na qual o liberal dá de cara com a verdade de sua própria hipocrisia? Assim (fazendo referência à mais popular canção sobre o Kansas, de "O Mágico de Oz"), deveríamos tentar "alcançar sobre o arco-íris" -sobre a "coalizão do arco-íris" formada pelas lutas de questões únicas, favorecidas pelos liberais radicais- e ousar buscar um aliado naquele que aparenta ser o maior dos inimigos do liberalismo tolerante.

Slavoj Zizek é filósofo esloveno, professor no Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana. É autor de "Bem-Vindo ao Deserto do Real" (Boitempo). Ele escreve regularmente no Mais!.
Tradução de Clara Allain.


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