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NO QUINTAL DA CASA BRANCA
EM "MINHA VIDA", O EX-PRESIDENTE BILL CLINTON REPASSA OS FATOS CENTRAIS DE SUA TRAJETÓRIA, COMO O CASO LEWINSKY,
E TRAÇA UM MAPA DA HISTÓRIA POLÍTICA RECENTE DOS EUA
por Luiz Felipe de Alencastro
Preparada para ser lançada antes da convenção democrata [que aconteceu em julho](a fim de não
ofuscar o lançamento da candidatura Kerry), mas
no calor da campanha presidencial (para pegar carona na mobilização política), a autobiografia de Clinton
encontrou um embaraço.
De fato, "Minha Vida" [ed. Globo, coordenação da tradução de Cristina Cupertino, 920 págs., R$ 65] teve o azar
de sair na mesma época em que o livro sobre a autobiografia de Ulysses Grant [1822-1885] editada por Mark Twain
["Grant and Twain - The Story os a Friendship that Changed America" (Grant e Twain - A História de uma Amizade que Mudou a América), de Mark Perry, ed. Random
House]. Assim, não faltaram comentadores para fazer
uma comparação maldosa entre o livro mal ajambrado de
Clinton e a obra de Grant, "Personal Memoirs" [Memórias Pessoais](1). Escrita de cabo a rabo pelo general vencedor da Guerra Civil Americana e [18º] presidente dos
EUA, no final de sua vida, quando ele se encontrava empobrecido e imobilizado pela doença, "Memórias Pessoais" é
uma obra literária admirada por todos. Nada a ver com
"Minha Vida".
Nas fotos do livro aparecem cenas da vida de Clinton,
com penteados e roupas -dele e de seus pais-, que gente de sua geração vê em suas próprias fotos de família. Desenrola-se a vida de um americano que saiu de uma família difícil e cresceu numa época complicada. Clinton seguiu de perto a Guerra do Vietnã, notando com acuidade
os acontecimentos. Ele não esconde sua oposição à guerra
e fala de seus amigos pacifistas. Em particular, do drama
de Frank Aller, que acabou se suicidando. Salvo para gente
belicista como [George W.] Bush filho, que era a favor da
guerra -mas se virou para ficar de fora-, o Vietnã marcou toda a geração do ex-presidente americano.
Há uma foto do instante em que Clinton recebe a informação sobre a morte de Yitzhak Rabin, o premiê de Israel
assassinado em 1995. A foto e o texto do livro deixam claro
que Clinton tinha estima por Rabin e ficou bastante abalado com a notícia. Outra foto mostra sua risada junto de [o
ex-presidente da Rússia Boris] Ieltsin, na cúpula russo-americana de outubro de 1995. Haverá leitores que ainda
se recordarão do episódio. Ieltsin, de porre, disse aos jornalistas que eles eram "um desastre". Tratava-se de um insulto gratuito a profissionais sérios reunidos para ouvir
declarações sérias sobre a guerra e os massacres na Bósnia.
Vindo de um presidente que atropelava a liberdade de
imprensa na Rússia, o insulto deveria ter levado Clinton à
circunspecção. Suas gargalhadas desbragadas chocaram
quem não viu nenhuma graça na grosseria de Ieltsin. Colocar aquela foto no livro é apostar na falta de memória
dos leitores. Mais adiante, Clinton elogia o então presidente FHC, como "um dos líderes mais notáveis" que havia
conhecido. Porém, apostando ainda na falta de memória,
não está nem aí para a história recente do Brasil.
Escreve que "muitos brasileiros guardavam ressentimento contra os Estados Unidos", sem dizer que durante
20 anos o país viveu sob uma ditadura acobertada por
Washington. Há partes do livro, como o pequeno resumo
histórico sobre a Universidade de Oxford, em que Clinton
e seus "ghost-writers" parecem ter usado o guia turístico
da cidade e os comandos "copiar" e "colar" de seu computador (pág. 134).
Clinton arruma como pode os podres de sua vida. Há
enrolações fáceis de explicar, como sua célebre resposta,
quando lhe perguntaram se ele tinha fumado maconha:
"Fumei, mas não traguei". Mas Clinton se enrasca. Em vez
de passar batido sobre o assunto, ele tem a pachorra de
elencar um jornalista inglês que teria testemunhado sua
baforada de mentirinha numa longínqua noitada em Oxford. Entretanto, quando chega nas enrolações mais complicadas envolvendo o mulherio de Arkansas e de Washington e, em particular, "la" Lewinsky, seu livro é relativamente objetivo. Obviamente, houve um batalhão de advogados conferindo essas páginas antes de ele soltar o texto para o editor.
Golpe de Estado
No entanto o "Washington Post"
notou uma contradição importante. No seu depoimento
de 1998, Clinton disse que o caso com Monica Lewinsky
havia começado no "início de 1996", enquanto ela dizia
que tinha sido no final de 1995. A turma de Kenneth Starr
[promotor independente dos EUA] afirmava que Clinton
estava mentindo, para esconder que o caso ocorrera quando ela ainda era estagiária na Casa Branca, antes, portanto,
de ela arranjar outro emprego.
Ora, na página 729, Clinton diz que o caso começou "em
fins de 1995", mas, na página 755, ele afirma que foi no início de 1996. Fora o "Washington Post", ninguém encasquetou com essa contradição. Prova de que o escândalo
perdeu sua significância. Prova também, segundo alguns,
de que se tratava de uma tentativa de golpe de Estado armado pela extrema direita republicana, a qual conseguiu
chegar aos seus fins em 2000, depois de "roubar" a eleição
presidencial (2).
Curiosamente, Clinton não faz a comparação que daria
muito relevo a seus feitos: ele foi o primeiro democrata,
depois de Franklin Roosevelt, a ser reeleito para a Casa
Branca. O fato não é banal e merece uma explicação mais
objetiva, que não aparece no livro.
Na realidade, Clinton conseguiu essa proeza por três razões. Depois da derrota de Michael Dukakis (então governador de Massachusetts), em 1988, diante de Bush pai, os
democratas procuravam um presidenciável de um lugar
mais conservador e puxaram Clinton, jovem governador
de Arkansas, um Estado tão caipira e centrista quanto a
Geórgia, de onde Jimmy Carter havia saído para entrar na
Casa Branca (as mesmas causas produzirão os mesmos
efeitos: se Kerry perder agora, os democratas vão dar um
basta nos seus presidenciáveis vindos da Costa Leste e
procurar um candidato nos Estados do Sul).
Em segundo lugar, vendo que a decidida oposição de
Dukakis à pena de morte havia lhe custado muitos votos,
Clinton mudou a postura observada no seu primeiro
mandato de governador de Arkansas (1978-1980). Desde
1988, no seu terceiro mandato como governador (1986-1988), começou a declarar-se favorável à pena capital. Em
1992, candidato às presidenciais, ele interrompeu a campanha para ir ao Arkansas assistir à execução de dois condenados à morte em julgamentos bastante controversos.
No segundo mandato presidencial, Clinton moderou
sua posição, quando exames de DNA e um estudo da Universidade Columbia demostraram falhas graves nas condenações à morte. Mas ele nunca afirmou, como Dukakis,
que era contrário à pena capital.
Enfim, Clinton reduziu o escopo do Estado de Bem-Estar Social defendido pelos democratas. Sua reforma de
1996 diminuiu o auxílio federal às famílias pobres, piorando a situação das mães solteiras. Clinton diz que se orgulha dessa reforma, que criou incentivos para transferir
pessoas carentes "da dependência (da ajuda governamental) para a autonomia pelo trabalho". Mas a mudança gerou resistências no Partido Democrata e dois membros de
alto escalão do governo -Mary Jo Bane e Peter Edelman- pediram demissão em sinal de protesto. Mary Jo
Bane, professora de Harvard, voltou a dar aulas. Mas Edelman, que havia sido auxiliar de Robert Kennedy, botou a
boca no trombone: "Foi a pior coisa que Clinton fez na vida!", disse a respeito da reforma (3).
Clinton poderia se defender explicando o motivo real de
sua virada conservadora: nas eleições parlamentares de
1994, a direita republicana -liderada por Newt Gingrich- obteve a maioria na Câmara dos Deputados, liqüidando 40 anos de supremacia dos deputados democratas em Washington. De lá para cá, os democratas nunca mais tiveram maioria na Câmara, e o problema permanece todinho de pé: se John Kerry ganhar, Newt Gingrich
irá certamente azarar o seu governo.
Depois que o livro saiu nos EUA, com uma primeira edição de 1,5 milhão de exemplares, Clinton participou da
campanha de Kerry até ser nocauteado por um colapso
cardíaco. O fato arrebanhou-lhe mais simpatia entre os democratas mas também entre as multidões republicanas ou
apartidárias de comedores de hambúrguer, sobre as quais
paira o espectro do infarto que fulminou o ex-presidente,
consumidor compulsivo dessa iguaria.
Com as artérias desentupidas e quatro pontes de safena,
Clinton fez seu "come back" num comício na Filadélfia, ao
lado de Kerry. Quando subiu no palanque, foi saudado como "o último presidente idoneamente eleito dos EUA" e aí
deu uma boa e justa gargalhada. No site do "New York Times", foi publicado um artigo cujo título descreve o entusiasmo no comício: "Clinton recebe uma acolhida de "rock
star" no comício da Filadélfia!".
Clinton concluiu o livro quando já se sabia que Kerry seria candidato contra Bush. Se quisesse, poderia ainda enfiar várias passagens elogiosas ao senador de Massachusetts antes de enviar seu manuscrito para a editora. Mas ele
cita Kerry somente seis vezes, só uma vez a mais que FHC.
Kerry é mencionado quatro vezes sobre o mesmo assunto (a ajuda que ele, McCain e outros veteranos deram para
a normalização das relações entre os EUA e o Vietnã), uma
vez de maneira banal -para dizer que ele era descendente
de irlandeses- e só uma vez acompanhado de um elogio
político franco e direto (pág. 622). Por que tanto comedimento? Para só ajudar Kerry na justa medida, a fim de preservar as chances da candidatura de Hillary [Clinton, sua
mulher] nas presidenciais de 2008?
Clinton "made in China"
Uma versão pirata de "Minha Vida", publicada na China, foi traduzida para o inglês
nos EUA. Quem quiser pode ler agora, nessa autobiografia
"made in China", que Clinton era fã de Mao e outras baboseiras do mesmo quilate.
Mas os falsificadores não ficaram só nas inofensivas inserções patrioteiras. Também usaram a tesoura para cortar passagens em que Clinton criticava o regime de Pequim. Já haviam feito a mesma coisa na falsificação da autobiografia de Hillary Clinton ("Vivendo a História", ed.
Globo), podando os trechos em que ela denunciava o assassinato de bebês do sexo feminino, por parte de chineses
pobres demais para pagar dotes no casamento de suas filhas. Nesta hora de sinofilia aguda entre os grandes empresários brasileiros (e mundiais), vale a pena lembrar que a
China -a última grande ditadura capitalista- continua
sendo dirigida por um governo truculento.
Notas
1. Publicado em 1886. Há uma edição de 2000 e uma edição online:
www.bartleby.com/1011
2. Na resenha do livro de Clinton publicada no "New York Review of
Books" em 12/08/2004, o jornalista e historiador Garry Wills escreve,
como muitos outros americanos responsáveis, que eleição a presidencial de 2000 foi roubada de Al Gore, na Flórida.
3. Veja-se a entrevista que Edelman deu na época: www.horizonmag.com/poverty/peter-edelman.asp
Luiz Felipe de Alencastro é professor titular na Universidade de Paris-Sorbonne e pesquisador visitante da Universidade de Brown (EUA). É autor de "O Trato dos Viventes" (Companhia das Letras).
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