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Ponto de fuga
O filósofo e o detetive
Jorge Coli
especial para a Folha
Há algum tempo, esta coluna assinalava a publicação, na
França, de um romance histórico e policial. Giordano Bruno [1548-1600], o protagonista, é um personagem real. Ele
raciocina, deduz, descobre o assassino e expõe a aparência
ilusória das coisas. A Publifolha editou-o agora no Brasil,
em ótima tradução de Paulo Neves. O título é "O Emblema
da Amizade", e, seu autor, Jacques Bonnet.
A erudição é cúmplice das evocações. Os costumes, nesse ano de 1582, são retraçados com familiaridade segura:
"O halo de geada que flutuava no ar dava à nossa casa um
aspecto fantasmagórico. (...) A mesa fora posta na sala
principal. Todas as lareiras haviam sido acesas desde a
manhã, enchendo a casa de uma suavidade não habitual,
como se as próprias paredes tivessem se aquecido".
"Quando ela retirou o regalo de veludo e o manto de pele
de marta, mostrou-se num vestido carmesim de dupla
cauda e mangas pendentes que se destacava entre os trajes
escuros ou violetas dos outros convidados." Eis uma passagem que brota dos retratos feitos por Clouet ou Corneille de Lyon, dos festins pintados pela Escola de Fontainebleau, aos quais se acrescenta a intuição das sensações.
O livro não se limita, porém, à reconstituição de época.
Seu enigma nasce em meio aos conflitos provocados pelas
convicções religiosas daqueles tempos que, entre outros
exemplos, causaram o massacre de 3.000 protestantes em
Paris, no ano de 1571.
O crime torna-se, portanto, matéria à decifração filosófica das violências na história. O próprio Giordano Bruno
teria sua língua implacável arrancada pelos carrascos da
Inquisição. Foi queimado vivo no ano de 1600.
Derivas - "A justiça não é senão uma maneira de controlar
a multidão para evitar o caos, uma maneira sacralizada de
garantir uma aparência de ordem sem a qual não poderiam funcionar uma república ou um reino."
Giordano Bruno, no livro de Jacques Bonnet, não elucida um ato criminoso em nome de qualquer justiça. É antes
conduzido pela pulsão de desvendar. Não acredita na verdade como dado de convicção. "Ora, a verdade não passa
de diversidade e confrontação, o que incomoda todo sistema organizado."
Ela surge, antes, como um instrumento afirmativo, reconfortante, e perigoso, que desencadeia crueldade. Inserir a verdade no mundo, a verdade da convicção, é sempre
um ato de violência: "E os cátaros, os paterinos, os albigenses, os valdenses, os hussitas? É de perguntar se a fé num
deus único não é um perigo perpétuo. Se teu deus é único,
o dos outros não pode existir e, se existe, o teu é como que
negado. Um dos dois deve desaparecer. E, assim, no interior de uma mesma crença as pessoas podem se estripar,
se retalhar, se castrar, se desonrar".
Praia - A força da reflexão encontra-se na sua fragilidade. O Giordano Bruno de Jacques Bonnet reflete. Crenças
religiosas, que, em princípio, deveriam ajudar os homens a
viver, conduzem, no entanto, à autodestruição. Autodestruição física, a mais evidente, que ocorre nas matanças
convulsivas. Mas uma outra também, mais essencial: a
anulação do poder reflexivo, que, em princípio, deveria caracterizar o humano. "Toda essa gente estúpida sabe perfeitamente onde se situa o bem e o mal, enquanto eu mesmo tenho tanta dificuldade de me orientar; na verdade,
eles sonham apenas com o conforto e a preguiça de um sistema unívoco, enquanto eu adoro os grãos de areia."
Sinais - O filósofo não tem poderes. Constata a fragilidade
do pensamento diante dos fatos. Mas, como o autêntico
detetive dos romances policiais, não se conforma. Interroga, busca sentidos por trás dos sentidos, manifestos ou ausentes. A humana condição, mergulhada em terrores, não
descansa, a não ser que abdique de sua faculdade maior e
mais definidora, que é pensar. Quando isso ocorre, ela encontra a paz das certezas e verdades, paz causadora das
mais atrozes violências. "O Emblema da Amizade", de Jacques Bonnet, livro de crimes, detetives, romance histórico,
intriga, fascina e, mais ainda, põe em sintonia pavores do
passado e do presente.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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