São Paulo, domingo, 31 de outubro de 2004

Texto Anterior | Índice

Ponto de fuga

O filósofo e o detetive

Jorge Coli
especial para a Folha

Há algum tempo, esta coluna assinalava a publicação, na França, de um romance histórico e policial. Giordano Bruno [1548-1600], o protagonista, é um personagem real. Ele raciocina, deduz, descobre o assassino e expõe a aparência ilusória das coisas. A Publifolha editou-o agora no Brasil, em ótima tradução de Paulo Neves. O título é "O Emblema da Amizade", e, seu autor, Jacques Bonnet.
A erudição é cúmplice das evocações. Os costumes, nesse ano de 1582, são retraçados com familiaridade segura: "O halo de geada que flutuava no ar dava à nossa casa um aspecto fantasmagórico. (...) A mesa fora posta na sala principal. Todas as lareiras haviam sido acesas desde a manhã, enchendo a casa de uma suavidade não habitual, como se as próprias paredes tivessem se aquecido". "Quando ela retirou o regalo de veludo e o manto de pele de marta, mostrou-se num vestido carmesim de dupla cauda e mangas pendentes que se destacava entre os trajes escuros ou violetas dos outros convidados." Eis uma passagem que brota dos retratos feitos por Clouet ou Corneille de Lyon, dos festins pintados pela Escola de Fontainebleau, aos quais se acrescenta a intuição das sensações.
O livro não se limita, porém, à reconstituição de época. Seu enigma nasce em meio aos conflitos provocados pelas convicções religiosas daqueles tempos que, entre outros exemplos, causaram o massacre de 3.000 protestantes em Paris, no ano de 1571.
O crime torna-se, portanto, matéria à decifração filosófica das violências na história. O próprio Giordano Bruno teria sua língua implacável arrancada pelos carrascos da Inquisição. Foi queimado vivo no ano de 1600.

Derivas - "A justiça não é senão uma maneira de controlar a multidão para evitar o caos, uma maneira sacralizada de garantir uma aparência de ordem sem a qual não poderiam funcionar uma república ou um reino."
Giordano Bruno, no livro de Jacques Bonnet, não elucida um ato criminoso em nome de qualquer justiça. É antes conduzido pela pulsão de desvendar. Não acredita na verdade como dado de convicção. "Ora, a verdade não passa de diversidade e confrontação, o que incomoda todo sistema organizado."
Ela surge, antes, como um instrumento afirmativo, reconfortante, e perigoso, que desencadeia crueldade. Inserir a verdade no mundo, a verdade da convicção, é sempre um ato de violência: "E os cátaros, os paterinos, os albigenses, os valdenses, os hussitas? É de perguntar se a fé num deus único não é um perigo perpétuo. Se teu deus é único, o dos outros não pode existir e, se existe, o teu é como que negado. Um dos dois deve desaparecer. E, assim, no interior de uma mesma crença as pessoas podem se estripar, se retalhar, se castrar, se desonrar".

Praia - A força da reflexão encontra-se na sua fragilidade. O Giordano Bruno de Jacques Bonnet reflete. Crenças religiosas, que, em princípio, deveriam ajudar os homens a viver, conduzem, no entanto, à autodestruição. Autodestruição física, a mais evidente, que ocorre nas matanças convulsivas. Mas uma outra também, mais essencial: a anulação do poder reflexivo, que, em princípio, deveria caracterizar o humano. "Toda essa gente estúpida sabe perfeitamente onde se situa o bem e o mal, enquanto eu mesmo tenho tanta dificuldade de me orientar; na verdade, eles sonham apenas com o conforto e a preguiça de um sistema unívoco, enquanto eu adoro os grãos de areia."

Sinais - O filósofo não tem poderes. Constata a fragilidade do pensamento diante dos fatos. Mas, como o autêntico detetive dos romances policiais, não se conforma. Interroga, busca sentidos por trás dos sentidos, manifestos ou ausentes. A humana condição, mergulhada em terrores, não descansa, a não ser que abdique de sua faculdade maior e mais definidora, que é pensar. Quando isso ocorre, ela encontra a paz das certezas e verdades, paz causadora das mais atrozes violências. "O Emblema da Amizade", de Jacques Bonnet, livro de crimes, detetives, romance histórico, intriga, fascina e, mais ainda, põe em sintonia pavores do passado e do presente.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


Texto Anterior: + livros: A terra prometida e não resgatada
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.