São Paulo, domingo, 31 de outubro de 2004

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Em "O Século das Luzes", que sai em nova tradução, Alejo Carpentier ficcionaliza o conceito de revolução

A terra prometida e não resgatada

Adriano Schwartz
especial para a Folha

Em enquete realizada pelo Mais! há alguns anos [em 3/1/1999], "O Século das Luzes", do cubano Alejo Carpentier, foi indicado como um dos cem melhores romances do século 20. Mais do que justa, a eleição agora se reafirma pelo lançamento da nova e excelente tradução de Sérgio Molina. Trata-se, aparentemente, de um múltiplo romance de formação dos jovens irmãos Carlos e Sofia e de seu adoentado primo Esteban. Herdeiros de uma fortuna, os três vivem isolados em um palacete cubano na última década do século 18. Trocam o dia pela noite, encenam suas fantasias, divertem-se com invenções, organizam banquetes. A repentina chegada do comerciante Victor Hugues, personagem real que Carpentier ficcionaliza em sua narrativa, desencadeia uma série de mudanças, principalmente a súbita cura do primo, que parte em viagem com o novo amigo, ardente defensor das idéias jacobinas, e termina completamente envolvido pelas revoluções que agitaram a Europa e a América no período. Episódios dos acontecimentos no Haiti, na França e na Espanha são magistralmente recriados à medida que vemos o jovem cubano e seu companheiro francês, cada vez mais poderoso e logo o "representante" da Revolução Francesa para todo o Caribe, se movimentarem de um lugar a outro.

Fracasso
Aos poucos, vamos percebendo que o verdadeiro protagonista do romance não é nenhum dos personagens, e sim aquele anunciado pelo irônico e melancólico título, "O Século das Luzes". Não é a formação ou deformação dos jovens ou de Victor Hugues que presenciamos, e sim a do nosso tempo, um tempo marcado pelas idéias germinadas naquele outro tempo, um período "tão extenso que totalizava a ação de vários séculos", os "dias finais de um Século das Luzes que parecia ter durado mais de 300 anos".
Como escreveu [o crítico] Otto Maria Carpeaux em um instrutivo ensaio que fazia parte da edição anterior da obra (publicada pela Global) e que infelizmente não consta da nova, "a revolução de Hugues fracassou, aparentemente, mas continua se falando dela como de um acontecimento decisivo, aquilo foi "antes da Revolução", e isto aconteceu "depois da Revolução". A história é irreversível".
É, afinal, ali e então que surgem os gritos de "liberdade, igualdade, fraternidade", ao mesmo tempo em que se instaura com toda a força a "Máquina", metáfora das contradições revolucionárias concretizadas no sangue jorrando das cabeças cortadas "com a Liberdade, chegava ao Novo Mundo a primeira guilhotina", contradições sintetizadas no comportamento de Esteban: "Quando lhe apresentavam a Revolução como um acontecimento sublime, sem vícios nem falhas, a Revolução era para ele torpe e vulnerável. Mas diante de um monarquista era capaz de defendê-la com os mesmos argumentos que o exasperavam quando saídos da boca de um Collot d'Herbois".
É a própria validade da idéia de revolução, portanto, que está em jogo. A noção de algo vai acontecer para mudar tudo, algo que, primeiro, o jovem cubano remete ao mito da Terra da Promissão ("O mito mudava de caráter ao sabor dos séculos, respondendo a vontades sempre renovadas, mas permanecia sempre o mesmo: havia, devia haver, era necessário que, no tempo presente qualquer tempo presente, houvesse um Mundo Melhor") para, algumas páginas depois, relativizar, angustiado: "Nossa época está sucumbindo por excesso de palavras. Não existe nenhuma Terra Prometida além da que o homem pode encontrar dentro de si mesmo".


Adriano Schwartz é doutor em teoria literária pela USP e autor de "O Abismo Invertido - Pessoa, Borges e a Inquietude do Romance em "O Ano da Morte de Ricardo Reis'" (ed. Globo).

O Século das Luzes
384 págs., R$ 47,00 de Alejo Carpentier. Trad. Sergio Molina. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, São Paulo, SP, tel. 0/xx/11/3707-3500).



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