São Paulo, segunda-feira, 28 de abril de 2008

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Entrevista | Renato Bernhoeft

Tempo, modos de usar

Consultor identifica no uso inadequado de tecnologias e em fatores culturais as causas das horas desperdiçadas no trabalho

por OSCAR PILAGALLO


A dificuldade do brasileiro de dizer "não" é um dos fatores que o levam a desperdiçar tempo no trabalho. Acaba fazendo coisas sem necessidade. O inglês, o americano, o anglo-saxão em geral, ao contrário, sabem dizer um "não" seco. E ponto. Não é indelicadeza. É cultura.

Há uma outra dimensão do tempo em que o brasileiro leva desvantagem em relação a seus pares de outras nacionalidades. É o tempo que o funcionário dedica à empresa. Não se trata da jornada diária. Trata-se do tempo equivalente a uma grande parcela de sua vida. O brasileiro não veste a camisa da empresa -leva-a tatuada no corpo. Por isso, quando passa o tempo da empresa, quando ele se torna um "ex", tende a enfrentar problemas de identidade.

Reflexões como essas já tomaram algum espaço da agenda de Renato Bernhoeft, que gastou tempo para que outros pudessem poupá-lo. É o trabalho dele, pelo menos em parte. Escreveu livros sobre administração, qualidade de vida, sucessão em empresa familiar, entre outros assuntos. São 14 no total. Além disso, faz conferências e assessora executivos e empresas. Na lista de clientes, há empresas como a Sadia, a Gerdau e a Vicunha.

Renato Bernhoeft não é de perder tempo. Nem na vida pessoal. Casou-se com a peruana Rosa três meses após se conhecerem. Tem cinco filhos, três nascidos no Peru e dois no Brasil, cada um numa cidade diferente, o que dá a medida de quanto já circulou pelo mundo. Das viagens, guarda recordações (como as que tem da última, ao Alasca, com os netos) e traz parâmetros sobre a administração do tempo.

Aos 65, Bernhoeft está atento à passagem do tempo. "Estou me esforçando para envelhecer sem criar dependência, financeira e afetiva, de filhos e netos", diz. "Quero ser útil e uma referência para eles, até o final."

Folha - Seu livro "Administração do Tempo" tem mais de 20 anos. Nesse meio tempo, surgiram o celular, a internet e o e-mail. A nova tecnologia economiza ou desperdiça tempo?

Renato Bernhoeft - As novidades tecnológicas, que por sua praticidade trazem o apelo de economizar tempo, têm tido efeito contrário. Hoje as pessoas estão permanentemente conectadas e disponíveis para interrupções e forte acesso a sua privacidade. Mas é importante ressaltar que esse não é um problema causado pela tecnologia, mas pelo uso inadequado e irresponsável que as pessoas fazem dela. Quem deve estabelecer limites e buscar a preservação da privacidade é o usuário dessa parafernália.

Folha - Também nesse período as empresas tiveram ganhos de produtividade. Os funcionários estão aprendendo a administrar o tempo?

Renato Bernhoeft - Os ganhos de produtividade decorrem de uma série de fatores de pressão, começando com o clima de competitividade que se estabelece em muitas empresas e até mesmo pelo estresse da vida moderna. A questão tempo não pode ser vista na dimensão exclusiva do trabalho. Ela deve ser encarada como parte do conjunto da vida pessoal e profissional de um indivíduo. É preciso fixar prioridades em todas as dimensões da vida.

Folha - A maior produtividade enxugou as empresas, levando muitos empregados à terceirização, ao trabalho em casa. Do ponto de vista do uso do tempo, o desafio deles é maior do de quem ficou nas empresas?

Renato Bernhoeft - Trabalhar em casa é um novo desafio para os profissionais. Exige muita disciplina, rotina. Não são todas as pessoas que conseguem fazê-lo. Numa cidade como São Paulo, com um trânsito caótico, essa pode ser uma alternativa. Mas é bom saber que muitas empresas utilizam esse recurso não apenas para melhorar a qualidade de vida do funcionário, mas como forma de reduzir custos operacionais. E muitas têm fracassado porque não preparam o funcionário para essa nova situação. É uma outra forma de trabalho.

Folha - Quais são hoje os maiores desperdícios de tempo?

Renato Bernhoeft - Os cinco maiores são: interrupções por telefone, uso indiscriminado do computador pessoal, falta de estabelecimento de prioridades, interrupções de pessoas e incapacidade para dizer "não".

Folha - Sobre essa incapacidade, trata-se de um traço cultural? O homem cordial é um desperdiçador de tempo?

Renato Bernhoeft - A dificuldade de dizer "não" é cultural. Em nossa cultura não é comum o uso de formas diretas de dizer "não", como acontece na cultura anglo-saxônica. Na realidade, não se diz "não" nem mesmo de maneira educada ou sutil. Sem dúvida ainda persiste entre nós a conduta e valor do homem cordial.

Folha - Por falar em traço cultural, onde o brasileiro se situa entre o japonês (que tem fama de viver para o trabalho) e o europeu (que tem menores jornadas de trabalho)? O brasileiro divide bem o tempo entre trabalho, família e lazer?

Renato Bernhoeft - O nosso modelo de relação com o trabalho foi muito copiado dos americanos, baseado na lealdade e dedicação canina à empresa. Isso tem comprometido, ao longo dos anos, uma adequada distribuição do tempo, com prejuízo para a vida pessoal, familiar, social e individual. Há pessoas que não apenas vestem a camisa, mas estão tatuadas pela empresa. Camisa ainda lava e desbota. Tatuagem não sai mais. Percebo isso no trabalho de preparo de executivos para a aposentadoria. A maioria não se prepara para essa nova fase da vida. Pensa apenas nas questões financeiras e de preservação do padrão de vida. Torna-se apenas um "ex". E "ex" é pior que vice, pois este ainda serve para algo.

Folha - Tempo é dinheiro? Ou a frase, em geral associada a Benjamin Franklin, está ultrapassada?

Renato Bernhoeft - Acho muito simplista dizer que tempo é dinheiro. Tempo é muito mais importante porque ele é inelástico, irreversível, não pode ser guardado. Tempo é, acima de tudo, uma sensação. Importa avaliar o sentimento que o uso do tempo provoca. A festa de aniversário do meu filho em que estive ausente não volta mais.

Folha - As pessoas hoje em dia estão mais preparadas para o ócio?

Renato Bernhoeft - Eu não afirmaria que estão mais preparadas. Estão mais sensiblizadas. Nossa sociedade tem se tornado, a cada dia, mais competitiva e consumista. A luta por ostentação e status aumenta a ansiedade e o estresse. Falta à sociedade fazer essa autocrítica. As famílias e escolas deveriam cuidar disso. Não somos educados para a reflexão e para nos apropriarmos de nossas vidas.

Folha - O exercício do ócio, se é que se pode dizer assim, é prejudicado pelo sentimento de culpa derivado de uma ética que glorifica o trabalho?

Renato Bernhoeft - Na ética calvinista, o ócio é uma forma de pecado. No Brasil, apesar de não termos essa formação protestante, o estilo das empresas foi importado dos Estados Unidos -e o discurso veio junto.
Veja, por exemplo, o caso do hobby. Ter um hobby decorre da nossa dificuldade de conviver com o ócio. Ou seja, até o tempo livre tem que parecer produtivo. Isso é pura culpa. O desfrute é um processo de permanente adiamento. "Depois que me aposentar...". "Depois que os filhos estiverem criados...". "Depois que tiver uma casa na praia...". Escrevi um livro para tentar mostrar que o desfrute deve ser no presente, não no futuro.

Folha - A maior longevidade das novas gerações significa que no futuro mais pessoas terão mais tempo depois da chamada vida produtiva. Quem pode faz planos hedonistas, quem não pode aperta o cinto. Como usar o tempo nesse período caracterizado pelo paradoxo de se ter mais tempo (o tempo livre) e menos tempo (o tempo de vida)?

Renato Bernhoeft - A longevidade é um dos mais novos e intrigantes desafios da sociedade moderna. Viver mais tempo vai exigir que nos reinventemos mais vezes. E isso em todos os papéis que vivemos: profissional, conjugal, familiar, espiritual, social, educacional, recreacional, físico, individual. Sur­girão preconceitos contra os idosos. Mas ao mesmo tempo a terceira idade é um novo mercado para o lazer, a medicina, o turismo. Vamos ter que rever nossos padrões de beleza, de sucesso e de expectativa de vida. Nas famílias poderão conviver três gerações, com conflitos, desafios e ajustes. E não devemos encarar isso como problema, mas como oportunidade.

Folha - A pressa é uma droga que vicia? É possível viver num grande centro urbano sem estar sempre com pressa?

Renato Bernhoeft - Sem dúvida, a pressa, o estresse, a ansiedade são as novas drogas da vida moderna. Quem vive numa cidade como São Paulo deve preparar-se para isso. Os tempos de deslocamento passaram a ser maiores e mais estressantes. E influem no tempo, pois o tempo não é só uma medida. Ele vai depender de onde estão a nossa atenção e a nossa mente.

Vamos ter que programar melhor os deslocamentos. Usar mecanismos de redução da ansiedade e agressividade. Música, livros em CD, distrações poderão ajudar. Mas cada um deverá ver o que funciona melhor para si.

E será preciso ter cuidado para não querer tornar todo esse tempo "produtivo", com uso do celular ou até do laptop. Isso pode aumentar o estresse. Viver em grandes centros vai exigir uma reeducação. Não basta só reclamar e idealizar uma vida no campo numa casinha de sapé.

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