São Paulo, segunda-feira, 09 de agosto de 2010

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MARIA INÊS DOLCI

Carro batido à espera de conserto


Na hora de optar entre fornecer peça de reposição e para montar carros novos, a indústria decide pelo zero


LEMBREI-ME, outro dia, de uma cena na época do Plano Cruzado, ali por 1986: um consumidor parado em uma loja de calçados repleta de pessoas. Não foi atendido, ninguém lhe perguntou se estaria interessado em algum produto.
Era um período com preços congelados, o que provocou desabastecimento em muitas áreas da economia.
Vinte e quatro anos depois, a economia está novamente aquecida. Depois do "cavalo de pau" nos negócios a partir de setembro de 2008, o crescimento está retornando desde abril ou maio de 2009.
Algo para ser comemorado, não?
Contudo, sempre há algum "porém" em tudo na vida. Um sujeito ganha na loteria, porém se formam filas de pretensos amigos e desconhecidos familiares em busca de dinheiro fácil. O Brasil chegou como favorito à Copa de 2010, porém a seleção nos decepcionou.
Como todos sabem, as vendas de automóveis são um dos motores do crescimento econômico no Brasil. Com crédito de longo prazo, as montadoras estão no céu, com produção em alta.
Segurados e seguradoras de veículos, veja o "porém" aí de novo, estão mais perto do inferno.
Na hora de optar entre fornecer peças para reposição e para a montagem de novos veículos, a indústria decide em favor do zero-quilômetro. Em razão disso, há falta generalizada de itens que vão de faróis a componentes elétricos, como mostrou reportagem do jornal "Valor Econômico".
Os consumidores reclamam, com razão, de ter de esperar muito mais tempo pelo conserto de um veículo.
Não se trata somente de um problema de mercado. Desculpas não consertam automóveis danificados. Além disso, o CDC (Código de Defesa do Consumidor), em seu artigo 32, é extremamente claro: "Os fabricantes e importadores deverão assegurar a oferta de componentes e peças de reposição enquanto não cessar a fabricação ou importação do produto".
Ao comprar um carro, portanto, um consumidor também tem o direito assegurado, por lei, de contar com peças e componentes de reposição, quando necessário. Demanda excessiva é um dos bons riscos do empreendimento econômico, e a solução deve vir com investimentos e decisões rápidas.
Os consumidores têm, consequentemente, direito de recorrer à Justiça para que seu veículo seja consertado em um período razoável, compatível com a atividade. No caso de pessoas que utilizam o carro para trabalhar ou estudar e que comprovem perdas decorrentes da demora em conseguir repará-los, há até a possibilidade de solicitar indenizações por meio judicial.
Volto ao início do texto, quando me recordava da euforia do Plano Cruzado, que levou alguns comerciantes a descuidar de seus clientes.
Bem, depois veio o Cruzado 2, e em 1987 a situação se complicou, com retorno da inflação e queda de vendas.
Com isso, quero dizer que períodos de bonança não são ininterruptos. Há ciclos econômicos que se sucedem. Amanhã ou depois, em um mercado menos aquecido, seguradoras, montadoras, oficinas talvez tenham de ir atrás dos consumidores hoje negligenciados.
Então, por que não tratá-los bem, com respeito a seus direitos, desde já?
Quando a crise afetava as montadoras, o governo federal estabeleceu incentivos para a compra de automóveis. Interveio, portanto, para estimular os negócios.
Talvez fosse a hora de intervir em prol dos consumidores que têm seguro de automóvel, mas que, na hora de utilizá-lo, têm de ficar na fila à espera de um para-lama ou de uma lanterna.
Embora as seguradoras entrem na história como vítimas, pois as oficinas têm carência de peças e de mão de obra, devem resolver o problema, sim, porque o segurado, ao pagar o seguro, fez a sua parte. Que utilizem o peso de suas entidades setoriais para obter atendimento mais adequado das montadoras. Se isso não for resolvido logo, além dos carros, as reputações das empresas envolvidas também serão arranhadas e amassadas.


MARIA INÊS DOLCI, 54, advogada formada pela USP com especialização em business, é especialista em direito do consumidor e coordenadora institucional da ProTeste Associação de Consumidores. Escreve quinzenalmente, às segundas, nesta coluna. Internet:mariainesdolci.folha.blog.uol.com.br

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