São Paulo, domingo, 23 de maio de 2010

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VINICIUS TORRES FREIRE

Beato Lula, oposição santinha



A campanha de 2010 está com jeito de se tornar a mais apolítica e vazia de ideias da história moderna do país


DOIS TERÇOS dos atuais eleitores de José Serra (PSDB) consideram o governo Lula ótimo ou bom, registra o Datafolha. Noutra leitura dos números, mais ou menos um de cada quatro eleitores gosta muito da gestão Lula (lhe dá "ótimo/ bom"), mas prefere por ora votar em Serra.
Como Lula tem 76% de ótimo/ bom, sobra obviamente pouco de "regular" (19%) e "ruim/péssimo" (5%), desafetos em tese mais inclinados a votar no tucano. Mais uma vez óbvio, daí a estratégia serrista de deixar Lula quieto em seu altar.
Do ponto de vista estrito da campanha de Serra, trata-se de estratégia inteligente, talvez a restante, pois espinafrar o lulismo é arriscar-se ao sacrifício eleitoral. No que diz respeito ao debate de alternativas, porém, existe o risco de termos a eleição mais vazia desde sempre. Desde a volta da eleição de presidentes, em 1989. Desde as eleições da República de 1946. Talvez não menos vazia do que as eleições da República Velha ou do Império, com suas opções entre "nhonhô x ou y". Sim, há alguma ironia aí. Alguma.
A beatificação de Lula e a indiferenciação ideológica destes tempos produziram uma disputa eleitoral em que o conflito não passa da picuinha. Em que as possíveis diferenças de programa e coalizões de poder agora são escondidas até das elites econômica, política e cultural, irrelevantes em termos de votos.
É possível fazer um paralelo histórico, ainda que sarcástico, com os tempos de Getúlio Vargas. Deposto, Vargas arranjou de manipular dois dos três grandes partidos da República de 1946, o "conservador" PSD e o "trabalhista" PTB. Mas ainda sobrava a "direitista" UDN, a quem os varguistas chamavam de inimiga dos "marmiteiros" na eleição de 1946, o equivalente a menosprezar o Bolsa Família nos dias de hoje. Não há mais os equivalentes de udenistas. Nem dos comunistas.
Note-se que em 1946 ainda havia os comunistas, 10% do eleitorado, por aí. Mas o PCB foi banido pelo presidente-general Eurico Dutra, que também reprimia sindicatos -mas essa é outra história.
O getulismo acabou por agregar uma coalizão de pessedistas, trabalhistas e até comunistas, entre outros menos cotados. Mas havia oposição da UDN, muita vez golpista.
Em 2010, o lulismo foi além. Se mostrou forte a ponto de dissipar a diferença entre governo e oposição, esta rendida devido a uma mistura de servidão voluntária e estratégica-marqueteira. A facção do PSDB que metaforicamente poderia ser chamada de "udenista" debandou. Foi ganhar a vida na banca e na grande empresa e de resto não se dá mesmo com Serra, "esquerdista".
Espíritos otimistas podem dizer que a indiferenciação das candidaturas se deve mais a um quase consenso programático que à beatificação de Lula. Ou talvez ao fato de que Serra e Dilma Rousseff (PT) tenham genoma parecido, a origem de esquerda aguada por 40 anos de desilusões ideológicas e intelectuais.
Porém, mesmo com a geleia política e social do país, com nossos arranjos brasileirinhos e com a habilidade luliana de acender uma vela para a banca, outra para a grande empresa e uma terceira para os pobres, há diferenças restantes no país: políticas, intelectuais, sociais.
A campanha de 2010 está com jeito de ser, no entanto, a mais despolitizada e intelectualmente vazia da história moderna do país.

vinit@uol.com.br


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