São Paulo, terça-feira 08 de abril de 2008

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Inverno 2008-09

O mito do novo

Temporada do inverno 2008-09 no Hemisfério Norte foi marcada pela austeridade e a tradição

por Alcino Leite Neto, enviado especial a Paris, Milão, Londres e Nova York

A moda tem horror às palavras "velho", "antigo" ou "tradicional". E ama as palavras "jovem", "novo" ou "futuro". Na cultura atual, que muitos pensadores classificam como pós ou hipermoderna, a moda é uma das poucas atividades em que a palavra "moderno" ainda é usada sem percalços, à vontade, junto com os conceitos "vanguarda" ou "futurismo" (sic).

Assim como gostam do que é "jovem" e "moderno", os fashionistas também adoram o "urbano". E frequentemente ouvimos alguém falar que faz "moda urbana" -como se houvera uma moda rural.

Ao dizer "urbano", de fato, as pessoas da moda querem dizer "internacional", ou seja, uma roupa livre de regionalismos, provincianismos ou nacionalismos, alinhada com o gosto da elite globalizada. Pois também não há nada que desagrade mais aos fashionistas do que um criador apegado às suas raízes e que insista em evocar tradições em seu trabalho. Imediatamente, ele será taxado de "velho" ou "antigo" -se muito talentoso, será tratado como excêntrico.

"Urbano", "jovem", "moderno" e "novo", porém, não passam de palavras de ordem do business da moda, que os próprios fashionistas ajudam a veicular, de tal forma o seu "pensamento crítico" está impregnado pelo marketing. São palavras que o business evoca com ansiedade, porque precisa de um consumo célere, muito veloz, que dê a sensação de envelhecimento rápido de tudo, para que coisas "novas" sejam desejadas sofregamente nos mercados globais.

Porém, se observamos com uma lupa as temporadas internacionais de moda, veremos que são poucos, muito poucos, os estilistas que de fato conseguem criar algo "novo", ou seja, arriscar-se rumo ao desconhecido. A maioria não faz mais que remexer continuamente no baú de ícones do passado e adaptá-los ao presente. Daí as evocações labirínticas ao legado das "maisons" para as quais os estilistas trabalham, as referências obsessivas à moda de épocas passadas: o estilo das nobrezas européias, dos anos 40, 60, 70, 80 e assim vai... A moda inteira gira hoje num círculo vicioso de rememorações, dando a impressão, enquanto rodopia, de estar andando para a frente.

A temporada do outono-inverno 2008-09 no Hemisfério Norte -tal qual se viu nos desfiles de Nova York, Londres, Milão e Paris, acompanhados in loco pela Folha foi marcada pelo receio das grifes de assumirem riscos criativos, em face de uma possível recessão econômica, e, portanto, trouxe coleções sem grandes vôos e mais conformadas com o peso da tradição e do comércio.

Há exceções. Em Nova York, Francisco Costa realizou para a Calvin Klein uma radical exploração escultural e arquitetônica do corte e da modelagem, trabalho tanto mais extraordinário quanto ele conseguiu manter intactas certas silhuetas arquetípicas.

Em Milão, Raf Simons tomou o mesmo caminho com a grife Jil Sander, ampliando a plasticidade das formas, em dobras e torções elaboradas, que de certa maneira revêem o minimalismo da marca à luz das experimentações da arquitetura contemporânea.

Em Paris, Stefano Pilati fez para a Yves Saint Laurent uma das mais belas coleções da temporada, decididamente experimental, mas sem estardalhaço nem programa.

A grande surpresa do inverno 2008, porém, chegou pela Prada, que levou às passarelas de Milão uma série de looks trabalhados totalmente com rendas.

Técnica ancestral, associada freqüentemente a uma imagem arcaica da mulher, dos tempos da castidade religiosa ou da roupa de domingo das camponesas, a renda recebeu pelas mãos de Miuccia Prada um tratamento contemporâneo, irônico e até erótico, que praticamente a ressuscita para o nosso tempo.

Mais interessante ainda é ver como a estilista, no desfile da sua grife jovem, a Miu Miu, em Paris, continuou a "reflexão" sobre a renda ao criar looks inspirados na roupa esportiva, que utilizam, com tecidos tecnológicos, tramas vazadas que recordam a técnica antiga.

Os desfiles da Prada e da Miu Miu são complementares. O primeiro revê a severidade das mulheres provincianas do passado; o segundo, a disciplina austera das esportistas atuais. Na Prada, surgem emanações de um luxo puritano, feito de sublimações passionais. Na Miu Miu, o conforto e a agilidade combinam com uma nova sensualidade, nesta época em que o puritanismo às vezes se disfarça de paixão pelo esporte e pela saúde.

Miuccia Prada confronta, assim, o antigo e o atual, embaralhando as cartas. No mais velho, ela encontra o mais jovem. No rural, o urbano. No provinciano, o global. No passado, o futuro. E vice-versa.

Damas de negro
Em tempos de apreensão econômica, a cor preta dominou a temporada do Hemisfério Norte. E a sua versão mais fascinante apareceu nas rendas e transparências, que exploravam o contraste com a pele e infiltravam sensualidade pelas tramas cerradas. A Prada, para quebrar a austeridade de seu desfile em grande parte baseado em rendas, chegou a exibir modelos seminuas, convidando a um uso chique-erótico desta técnica ancestral. Os tons outonais, as variações de vermelho, o laranja, o violeta, o prata e o ouro desbotado foram outras cores que compareceram fortemente.

Xadrez sem amarras
O xadrez é um clássico do inverno, e desta vez ele chegou com particular vigor nas coleções que exploraram padronagens mais largas ou aplicaram as estampas em peças volumosas. A D&G fez uma coleção muito charmosa, baseada inteiramente em xadrezes, com diferentes formatos contrapostos à vontade e quebrando todas as convenções do uso. Misture à vontade.

Optical fashion
Temporada discreta, o inverno 2008-09 também foi comedido nas estampas. Poucas grifes arriscaram nas cores e nos desenhos, como foi o caso da Marni, de Dries van Noten e, naturalmente, da Emilio Pucci. E, quando elas o fizeram, optaram por estampas que flertavam com a geometria, com a optical art e até mesmo com a arte conceitual, como fez Alexandre Herchcovitch, que mostrou em Nova York as suas recriações da obra do artista Sol LeWitt.

Engolindo as garotas
A tendência de superdimensionar os casacos e mantôs vem das últimas temporadas, mas nesta beirou o êxtase. Grifes ampliaram ainda mais o tamanho das peças, ao ponto de algumas modelos serem engolidas por cachemeres esculturais, peles abudantes e tricôs de pontos gigantes. Em contraponto, apareceram séries de minipeles, boleros, casaquinhos, pelerines, macfarlanes e carmagnoles, menos para proteger do frio do que para criar um efeito, um volume e um charme.

Chiques e selvagens
Apesar dos protestos, parece que a pele ainda tem um largo futuro na moda. Os mantôs peludos compareceram triunfalmente nos desfiles europeus e americanos, e um de seus usos mais atuais é com cintos largos e ultrachiques. Outras grifes, para quebrar a caretice, inventaram casacos de pelos abundantes, como se quisessem transformar as mulheres em poderosos animais selvagens.

Esculturas
Os estilistas andam fascinados pelas formas de Zaha Hadid e Frank Gehry, e a temporada foi bastante influenciada pelas liberdades da arquitetura contemporânea. Outros buscaram inspiração na escultura, recortando, dobrando e transfigurando as roupas como os artistas costumam fazer com o aço, a pedra e a madeira.

A mulher diagonal
Os longos com fenda que deixam ver uma das pernas chamaram atenção nos trajes para a noite. Uma perna à mostra, apenas, e por que não mostrar também o ombro, mas um só? Eis uma das silhuetas determinantes do inverno 2008-09: a mulher-diagonal, da sensualidade oblíqua e imperial.

Bocas de sino
As pantalonas apareceram em toda parte, mas menos tímidas em Milão, como na Burberry, com sua evocação dos anos 70. As skinnies continuam vigorando, mas já perderam muito de sua hegemonia.

O novo Oeste
A estética folk, com suas várias ramificações, inclusive no movimento hippie, pontuou as coleções de inverno. Ora eram imagens de conquistadores do Norte frio da América, ora de bandoleiros de faroeste, ora de índias que pareciam ter saído de um filme de John Ford.

Peça de resistência
O clássico tailleur sempre dá o ar da graça nos desfiles. Mas neste, particularmente, ele apareceu com muito vigor. Em momentos de impasse econômico, ele fascina por sua funcionalidade e versatilidade. Mas ninguém pensa só nesses dotes. O tailleur atual é luxuoso, com sutis ousadias estruturais ou com referências icônicas fortes -como na nostálgica versão de John Galliano para a Dior, inspirada nos anos 60 de Jackie Kennedy.

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