São Paulo, sexta-feira, 27 de junho de 2008

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Habitat

Réquiem para um sonho

por ALBERTO BARBOUR

Nem que seja por um breve momento, o sonho de morar em um lugar mais tranqüilo já deve ter passado por sua cabeça. Provavelmente, esse momento não foi assim tão breve, afinal tempo para pensar é o que não falta enquanto você tenta voltar para casa no final do dia. Diante da natureza morta do engarrafamento diário, da poluição e do barulho combinados à ausência de segurança e do contato com o verde, logo vem à sua mente uma idéia sedutora: arrumar as malas e se embrenhar na promessa de vida bucólica dos condomínios afastados da cidade.

Viver em metrópoles tem apresentado, de fato, uma conta cada vez mais salgada ao bem-estar, graças à inexistência de um bom plano de crescimento: em São Paulo, a maioria dos bairros não tem sistema viário, tem infiltração. São pequenos veios que vão se afunilando em ruas sem planejamento para receber tráfego pesado. Com o passar do tempo, essas ruelas se tornam atalhos conhecidos que, pouco depois, são institucionalizados com "direito" a uma linha de ônibus e a semáforos a cada esquina. Durma, respire e viva com um barulho desses.

Mas se a qualidade de vida nas cidades se tornou um desafio, a solução "rural" não é exatamente uma vitória: a decisão de voltar para a cabana primitiva -levando, claro, a TV paga- está amparada em uma ilusão: ninguém está se livrando dos problemas da cidade, está tão somente fugindo da bagunça imediata como crianças que fogem de casa e tudo que conseguem é dar a volta no quarteirão.

Antes que alguém possa se entediar com aquele mar de casinhas tranqüilas, o condomínio deixará de ser refúgio bucólico: aquela bela paisagem ao fundo logo se tornará um novo... conjunto de casas. O que era fim da linha se torna novamente passagem assim como aconteceu com os bairros centrais da cidade e, em breve, o trânsito estará de volta. Ainda levará tempo para o morador reconhecer o lugar como cidade afinal, ele estará à meia hora de carro da padaria mais próxima e, sabe-se lá, a quanto tempo do trabalho. No final das contas, a cidade vai se reconstituir e o morador vai perceber que apenas acrescentou um pedágio ou dois em sua vida.

A questão não está tanto na qualidade do ar dos condomínios "off-road", mas na ausência da cidade. As pessoas escolheram se agrupar em um mesmo território, séculos atrás, por uma boa razão: juntas, produzem qualidade de vida mais rica e variada. A cidade é capaz de centralizar as iniciativas e os desejos delas, que estão em cada quarteirão, em cada bairro, em cada encontro casual com os amigos na calçada. Agregar a experiência urbana a certo padrão de qualidade de vida não é tão difícil ou, pelo menos, não é contraditório. Dá para fazer da cidade um lugar habitável, ainda que apinhado de gente. Basta trocar a ilusão de uma vida campestre, ao qual você não se acostuma mais, e enfrentar a realidade urbana com coragem, com bom plano urbanístico e, vá lá, com alguma esperança.

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