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'Sentei e então ouvi um grito pavoroso, que era muito alto'

Jornalista relata momento de maior tensão e conta como foi a libertação

Preocupação era se suas respostas teriam causado a prisão de amigos; na saída, havia 25 homens vendados

COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Voltei à cela ao fim do interrogatório, após pedirem meu email, senha e conta no Facebook. Ainda tentei fazer uma pergunta e pedir contato com a Embaixada do Brasil em Damasco, mas recebi de imediato mais um "cala a boca sírio".

Pouco após o retorno à solitária, abriu-se a portinhola e um pão sírio voou para dentro, seguido de um prato com uma batata e um ovo cozidos, gelados, e cinco azeitonas.

Olhava em volta, nas "artes" dos prisioneiros anteriores, e imaginava como faziam para contar os dias com riscos na parede.

Percebi que na porta de ferro os dias, as assinaturas e o "Allah Akbar" (Deus é maior, em tradução livre) -frase repetida à exaustão por manifestantes quando deixam as mesquitas para protestar e que se tornou um slogan da revolução- foram "desenhados" com pequenos pedaços de barbante. Prendi dois pedaços, um ao lado do outro, e comecei minha própria contagem.

Sentei e pela primeira vez ouvi um grito pavoroso, muito alto. Com o coração disparado, pensava que, se algum dos meus contatos fosse preso e torturado por minha culpa, nunca me perdoaria. E que talvez até já estivessem atrás de alguns deles...

E assim passei o resto de meus quatro dias em um dos calabouços sírios. Não me chamaram para novos interrogatórios, o que me deixava mais apreensivo.

No terceiro dia, continuava pensando nas brechas em minhas respostas no interrogatório, nos erros, nos amigos sírios, mas também em comida.

HOMENS VENDADOS

Tinha muita fome e não consegui acreditar quando serviram um prato com burghul (cereal derivado do trigo) e dois pedacinhos de frango. Gelado mas delicioso, perto das refeições servidas até então.

Comi, coloquei o prato no corredor pela fresta embaixo da porta e me revirei por longas horas, já sem me importar com o chão frio.

Quando já havia quatro riscos de barbante, a porta foi aberta e deixei a cela. Nas minhas contas, era a noite de quarta-feira, 9 de novembro, véspera do fim do Eid Al Adha, feriado muçulmano.

Sem a venda, presenciei a pior das cenas desde o primeiro dia naquele lugar. Ao longo dos corredores e salas do edifício estavam pelo menos 25 homens, de diversas idades, ajoelhados, de frente para a parede, descalços e sem camisa, algemados e com os braços levantados acima da cabeça.

Seis guardas tomavam mate e jogavam baralho ao lado da escada que levava à saída. Minhas malas estavam abertas, no chão. Enquanto verificava os pertences e contava o dinheiro, olhava ao redor e via que minha experiência não foi nada perto do que estava para acontecer com aquelas pessoas.

Após assinar vários documentos e deixar por lá minhas impressões digitais, fui acompanhado por outro agente até um táxi. Estava todo dolorido e arrastando meu tênis sem cadarço pela rua.

INTERVENÇÃO

Em casa, agradeci, ao telefone, a intervenção salvadora do embaixador do Brasil em Damasco, Edgar Casciano, que ficou sabendo da minha prisão e resolveu o assunto no mesmo dia.

Na residência oficial, esperando o horário do meu voo, descobri que o diplomata brasileiro já interveio com sucesso inclusive em casos envolvendo famílias sírias, pelo prestígio que possui e por ser a política externa brasileira uma das únicas que ainda mantém "portas abertas" com a Síria.

Estou certo de que, fosse eu europeu ou americano, a história seria muito mais longa e o final, bem menos tranquilo.

(GERMANO ASSAD)

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