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4 dias no inferno

Jornalista brasileiro a serviço da Folha relata como foi preso pelo serviço secreto sírio numa solitária e submetido a tortura psicológica

GERMANO ASSAD
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Decidi sair da Síria, naquele domingo de inverno rigoroso (6 de novembro), após sinais e avisos de que estava sendo monitorado de perto.

Eu estava estudando árabe no país havia sete meses. Nesse período enviei reportagens para a Folha, usando pseudônimo, pois tinha o visto de estudante e não de trabalho.

O regime, acusado pela ONU de matar 3.500 pessoas desde o início de uma revolta em março, restringe a entrada da imprensa estrangeira.

Apesar de ter parado com a colaboração nos últimos tempos, de estar com arquivos de computador protegidos e de não ter números comprometedores em minha agenda, sabia que, para os mukhabarats (a polícia secreta síria), bastam suspeitas.

Eram 19h30 quando arrumei as malas e peguei um táxi na frente de casa. "Garage Al Samarieh", disse ao motorista, planejando, de lá, tomar um carro para o Líbano.

No retrovisor, a imagem de dois homens vindo na direção do carro me apavorou.

Um toque no vidro. Eu e o motorista abrimos as janelas ao mesmo tempo e, enquanto um deles identificava-se como agente da polícia secreta, o outro simplesmente disse meu nome. O taxista, pálido, colado ao banco, não se mexia. Eu fazia esforço enorme para manter a calma.

Desci do carro. Um deles me deu o braço -como fazemos com parentes ou amigos queridos na Síria- e disse que gostaria muito de conhecer minha casa. Fizemos o caminho de volta e entramos.

Ofereci café e chá e eles discutiram entre si. Um queria, o outro não. O mais amigável foi convencido pelo colega a recusar a oferta e fomos direto para o andar de cima.

Quando ambos caminhavam pelo quarto olhando cada objeto disposto, a campainha tocou. Em poucos segundos, um terceiro agente subia as escadas, nada simpático.

Enquanto eles derrubavam prateleiras, quebravam estantes e tiravam tudo do lugar, eu perguntava o que estava acontecendo. De resposta, recebia uma levantada de sobrancelha acompanhada de um "tsc", o típico "cala a boca" sírio. Não insisti.

Após revistar lençóis, colchão, armários, escrivaninha, gavetas e um pacote de cereal já pela metade, um deles abriu o frigobar que ficava ao lado da cama e pegou duas pequenas bandejas de doces sírios. Abriu um sorriso e ofereceu aos colegas.

Com os pertences embalados -de MP3 a barbeador-, fechamos as malas e a casa.

Fui conduzido ao carro de braços dados, dessa vez com o terceiro agente. Os outros dois, à frente, davam instruções para esperarmos um pouco, conversarmos e então seguirmos adiante sem chamar a atenção.

Ao entrar no veículo, o agente que me acompanhava colocou uma das mãos em meu joelho, enquanto abriu a jaqueta e retirou uma Kalashnikov com a outra, encostando a base da arma na porta e a mantendo direcionada para meu rosto. Com batidas na janela, mostrava a arma para guardas de trânsito, que abriam caminho por ruas interditadas.

NA SOLITÁRIA

O primeiro agente perguntou se eu conhecia a rua que percorríamos.

De tanto conversar com gente recém-saída da cadeia, sabia que uma afirmativa poderia significar uma venda bem apertada. Disse: "Não exatamente".

Mas sabia sim, exatamente onde estava. Tinha visitado diversas vezes o parque que leva o nome de Al Arsouzi, escritor nacionalista árabe, um dos grandes inspiradores do partido governista Baath. Mas nunca havia reparado no prédio ao lado, protegido por muros altos e policiais à paisana com suas Kalashnikov.

Na entrada do edifício, um lance de escadas com um portão no meio levava ao subsolo. Ali, sobre uma mesa, colocaram minhas malas e começaram a tirar tudo de dentro, fazendo perguntas sobre cada objeto.

Um cidadão pediu meus cadarços e cinto, e então tive a certeza que a situação era das piores.

Levado para um corredor longo e estreito, fui colocado em uma cela solitária muito pequena, sem janela, com duas mantas e uma lâmpada comprida fluorescente que ficava ligada o tempo todo.

No meio da pesada porta de ferro havia uma portinhola, por onde recebi um pão dobrado. Em seguida, um prato com arroz gelado e dois pedaços de berinjela.

Ouvia as portas das celas vizinhas sendo abertas, outros presos utilizando o banheiro, dando uma batida na porta para avisar que haviam terminado. Eram orientados, com um grito, a voltar.

Acordei com o carcereiro do turno seguinte me mandando levantar. Gesticulando para que eu não vestisse meu tênis sem cadarço nem a jaqueta que usava de travesseiro, ele me vendou e conduziu para uma sala.

Sentado, escutei um agente dizer, em inglês, que informações muito ruins a meu respeito haviam chegado até a polícia. Percebi que havia outro, tomando nota de tudo.

À medida que pediam informações sobre pessoas com quem eu havia mantido contato, falavam sobre lugares e regiões conturbados em que estive e detalhavam até mesmo conversas e opiniões específicas que tinha tido com pouquíssimas pessoas. Faziam também questionamentos-padrão e algumas afirmações absurdas.

INTERROGATÓRIO

"Sabemos que fala árabe, mas por algum motivo, finge que não", disparou um deles.

Perguntou sobre dois repórteres brasileiros que trabalharam na Síria com permissão do governo e minha ligação com ambos, minha opinião sobre os acontecimentos no país, o que as pessoas com quem convivia falavam sobre a situação, fontes de renda, trabalhos anteriores no Brasil, países que visitei antes, o motivo de minhas idas ao Líbano e se pisara na Palestina ou em Israel.

A agonia da venda e o frio nos pés descalços faziam com que me encolhesse cada vez mais na cadeira.

Falei de meus trabalhos anteriores, disse que juntei dinheiro para a viagem e que gostaria de visitar o vilarejo de onde veio minha família, mas que estava esperando a situação se acalmar.

Contei o que ouvia de amigos cristãos: as histórias de sequestros, ônibus alvejados, balas perdidas, gente morta quando tentava sair de casa, abusos e mutilações cometidos por grupos extremistas de oposição -o que de fato vem ocorrendo desde meados de agosto/setembro.

Mas claro que não mencionei os relatos e imagens de tanques do governo disparando contra bairros sunitas (habitados também por outras minorias), prisões arbitrárias de pelo menos um membro de cada família em bairros com manifestações frequentes, repressão violentíssima de protestos pacíficos, sequestro e assassinato de jovens e outras atrocidades sofridas por opositores.

Eles sabiam das minhas ligações feitas e recebidas e das mensagens trocadas. Todos os contatos que apaguei do celular estavam registrados na papelada da operadora local de telefonia, nas mãos de meu interrogador.

Perguntaram nome por nome, ocupação, tipo de relacionamento, o motivo de ter contato com tantos oposicionistas. Foi uma eternidade até me liberarem.

"DESCULPE PRENDÊ-LO"

Empurrado pelo carcereiro, voltei para a solitária, tropeçando em tudo. Já dentro da cela, a venda foi retirada e voltei a me revirar em busca da posição menos desconfortável possível.

O tempo não passava, e a lâmpada fluorescente castigava os olhos. Deitado na cela, encostava a sola dos pés em uma parede e a cabeça na outra, numa extensão de não mais de 1,70 m por 0,5 m.

Horas depois, abriram a porta da cela e me mandaram levantar.

Dessa vez coloquei o tênis, vesti a jaqueta e fui conduzido sem venda para uma sala grande, com dois sofás, uma mesa comprida, um quadro pequeno do ex-presidente Hafez Assad (morto em 2000) e um enorme do filho e atual mandatário, Bashar Assad, na parede oposta.

Um cidadão caricato -muito alto, magro, de terno e gravata, uma pinta grande na bochecha e muito gel no cabelo- e outro senhor, beirando os 70 anos, conversavam. Levantaram assim que me viram. Apertaram minha mão e me ofereceram o sofá.

"Desculpe por prendê-lo, Germano", disse o caricato. "Mas precisamos de informação. Você sabe a situação..."

Começaram pedindo informações sobre alguns dos meus contatos encontrados na papelada da companhia telefônica, falaram de amenidades e insistiram que tinham informações de que estava em contato com pessoas na mídia. Mas com minhas negativas e a dificuldade de comunicação -ambos falavam muito pouco inglês e meu árabe é limitado-, acabaram desistindo.

Leia a íntegra
folha.com/no1008643

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