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Revolução pela metade

No primeiro aniversário da queda de Mubarak, egípcios dizem à Folha que se sentem frustrados

MARCELO NINIO
ENVIADO ESPECIAL AO CAIRO

Há exatamente um ano, o anúncio da renúncia do ex-ditador Hosni Mubarak levou a uma explosão de alegria no Egito e despertou a esperança de que uma inédita era de democracia se iniciava.

Era um fim de tarde tenso no Cairo, depois de 18 dias de protestos que transformaram a praça Tahrir no epicentro da onda de revoltas na região, mais tarde batizada de Primavera Árabe.

Hoje, a data será marcada sem festa, num clima de amarga frustração com a demora dos militares em transferir o poder para um governo civil e com a manutenção da perversa ordem social dos tempos do ditador.

Na semana em que o acontecimento mais importante da história moderna do Egito completa um ano, a Folha voltou às ruas do Cairo para saber o que mudou na vida dos protagonistas anônimos da revolução.

"Nada mudou", radicaliza o estudante de engenharia Ahmed Mustafa, 21, membro da torcida Ultra Ahly, do time mais popular do país. Esquece que antes da revolução não havia liberdade para criticar abertamente o regime, como faz hoje.

A repressão continua e mais de 12 mil pessoas foram processadas em tribunais militares desde a revolução. Mas nas ruas e na TV há debates acalorados questionando o sistema, algo impensável sob Mubarak.

Outra mudança foi a recente formação de um Parlamento em eleições livres, pela primeira vez em 60 anos.

Ainda é muito pouco para quem sonhava com transformações profundas e imediatas. O tumulto num jogo do Al Ahly em Port Said (a 220 km do Cairo) que deixou 74 mortos reacendeu o ódio à junta militar, acusada de conivência na tragédia.

"O desejo de transformação social deu em nada. O Egito ainda é um Estado policial, onde poucos têm muito, e a maioria vive na miséria", diz o estudante.

Assim como Ahmed, a jornalista Reida Ahmed, 32, estava na praça Tahrir no dia da queda de Mubarak. A euforia do momento hoje dá lugar ao ceticismo.

Ex-funcionária do jornal "Al Ahrar" (o liberal, em árabe), criado após a revolução, conta ter sido demitida por recusar-se a fazer reportagens condescendentes com a junta militar que substituiu o governo Mubarak.

"Muitos jornalistas aproveitaram a revolução para ter ganhos pessoais, e para isso evitaram críticas aos militares", acusa.

MUBARAKISMO VIVE

Os limites da liberdade de imprensa são reflexo da antiga estrutura de poder que sobreviveu à queda de Mubarak, diz o analista político Nael Shama, colunista do jornal "Daily News". "Mubarak saiu, mas o 'mubarakismo' resiste", diz ele. "Os militares mostram a mesma relutância em promover mudanças que levou à queda de Mubarak."

Muitos lamentam os resultados da revolução justamente pela falta de ordem que era garantida pela estrutura de poder de Mubarak.

Quem vive do turismo, que sofreu queda vertiginosa no último ano, mal consegue esconder a nostalgia. Nesta semana, a área das pirâmides de Gizé era um cenário desolador se comparado ao formigueiro de turistas de pouco mais de um ano atrás.

O guia Ramadan Mahmoud, 33, pai de dois filhos, conta que antes da revolução ganhava ao menos 600 libras (R$ 180) por dia. O faturamento médio caiu para 50 libras, reclama.

"Qualquer pancadaria no centro do Cairo sai na imprensa do mundo inteiro e afugenta os turistas", diz ele, segurando Michael Jackson, seu camelo favorito. "Turistas não entendem que o Egito não é só a praça Tahrir", afirma.

Para marcar o primeiro ano da queda de Mubarak, ativistas convocaram uma greve para hoje, seguida de uma "escalada de desobediência" civil para forçar os militares a entregar o poder.

A promessa de mais instabilidade não assusta o nonagenário Mohamed Abdallah.

Apesar de viver entre túmulos na "cidade dos mortos", uma das áreas mais miseráveis do Cairo, ele destoa do pessimismo dos jovens.

"A vida inteira esperei por isso", diz Abdallah, autointitulado "guardião dos mortos". "Agora pelo menos meus netos tem a chance de viver numa democracia."

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