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'A polícia queria que todos morressem'

Brasileiro sobrevivente de incêndio em presídio de Honduras diz que agentes se negaram a abrir portões; 356 morreram

Adilio Gomes Sobral aguarda sentença por tráfico de pessoas e abuso de menores; ele diz que é inocente

DIOGO BERCITO
DE SÃO PAULO

"Estou aqui no inferno", diz o brasileiro Adilio Gomes Sobral, 50, à Folha, ao atender o celular. Ele fala de dentro do presídio de Comayagua, em Honduras, onde um violento incêndio deixou 356 mortos na última terça-feira.

O número de vítimas, para Sobral, é reflexo da ação da polícia -que, diz, propositalmente manteve prisioneiros nas celas durante o incêndio.

"Os policiais encarregados de abrir os portões jogaram fora as chaves. Eles queriam que todo o mundo morresse."

Em entrevista à Folha anteontem, um porta-voz do Ministério Público afirmou que investigará quais foram as "situações que podem ter levado a algum tipo de atraso".

Sobral compara os bombeiros a tartarugas e mede o tempo de espera como uma "eternidade". Ele diz ter sido salvo não pelas autoridades, mas por um enfermeiro que passou diante da cela, tomou as chaves e abriu o portão. "Por um minuto, eu não estaria contando essa história."

Mesma sorte não tiveram diversos dos colegas de cela.

"Havia uns 40 corpos dentro do tanque de água. Eles se refugiaram no banheiro, mas eu esperei nos portões", diz.

Foram momentos de desespero. "O calor estava quase queimando a gente, e a fumaça asfixiava", conta. Ele, que foi dado como morto anteontem pela embaixada brasileira, não teve queimaduras.

"Vi muitos amigos morrerem. Também vi quando retiraram os mortos. Todos queimados. O fogo comeu tudo. Só o esqueleto ficou", conta.

Sobral confirma, durante a entrevista, os relatos que têm sido feitos pela imprensa sobre Comayagua. Celas superlotadas, por exemplo -na dele, 107 presos para um espaço que ele estima ser suficiente para 60. "Muita gente tinha de dormir no chão."

Agora, dormem espalhados pelo que sobrou. Na quadra, na igreja, na escola e "nas mesas de sinuca".

Dentro do presídio, não é permitido usar celular. "Mas se paga", explica Sobral. Por volta de US$ 50 (R$ 85). "Falo escondido da polícia, mas todos os presos sabem."

Ontem à tarde, ele procurava alguém que lhe emprestasse um carregador. O dele perdeu-se durante o incêndio.

Nascido no interior de Sergipe, Sobral cresceu em São Paulo -de onde mudou-se aos 19 anos, para jogar futebol. Ele se incomoda ao falar da carreira, não quer dar detalhes sobre esses anos. Mas conta que, desde então, morou pela América Latina.

Ele está em Comayagua há cinco anos. Foi preso há dois anos e nove meses pelas acusações de tráfico de pessoas e abuso de menores, de que se diz "totalmente inocente".

Sobral não mantém contato com a família no Brasil. Em Comayagua, teve mulher e um filho, hoje com quase três anos, a quem sustentava com a renda de uma discoteca.

Como boa parte dos presos ali, ele ainda não tem sentença. Um documento oficial divulgado por agências de notícias, nesta semana, dá conta de que 57% dos presos de Comayagua ou aguardavam julgamento ou estavam detidos por suspeita de serem membros de gangues locais.

"Quero pedir reparação a esse país", afirma. "Não só pelo incêndio, mas por estar detido sendo inocente."

KIT

Ontem, Sobral repassou essas reclamações a Zenik Krawctschuk, o embaixador brasileiro em Honduras. À Folha, o diplomata disse que a embaixada irá providenciar um kit de higiene pessoal e roupas. "O sistema penitenciário é bastante limitado."

A ONU pediu, ontem, investigação independente sobre o incêndio. Para o comissariado de direitos humanos, o desastre é consequência de "uma série de problemas endêmicos, como a superlotação carcerária". Segundo a ONU, Comayagua tem condição para manter 250 pessoas. O local abrigava mais de 800.

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