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Revolta à distância

Descendentes de sírios no Brasil acompanham tensos e divididos o conflito; comunidade reúne mais de 4 milhões

ISABEL FLECK
DE SÃO PAULO

Quando, em fevereiro de 1982, o sírio Moukhles Al Bnnoud soube que as tropas de Rifaat Assad, tio do ditador Bashar Assad, entrariam na cidade de Hama para acabar com a insurreição sunita contra o governo, sentiu que era a hora de deixar o país.

Al Bnnoud, que nasceu em Aleppo mas vivia em Homs, fora comandado por Rifaat na década de 70 e desertou por não concordar com o regime. Pelo mesmo motivo, temia que a experiência de Hama, onde morreram ao menos 10 mil civis, se espalhasse pelo país.

Foi no Brasil que encontrou segurança e emprego, conheceu sua mulher e teve filhos. Mas, apesar das três décadas de perfeito entrosamento com o país, Al Bnnoud, 60, sonha com o retorno.

"Voltarei com a bandeira da liberdade síria", diz, apostando que a queda de Assad está "muito perto". "Pode ter certeza de que a Síria não irá para trás. Já chega de ditadura."

Al Bnnoud é parte de um contingente de 4 milhões a 5 milhões de sírios que vivem hoje no Brasil. A maior parte deles pertence à segunda e à terceira gerações, descendendo de imigrantes que vieram desde o fim do século 19. A maioria também é cristã -uma minoria (10%) na Síria.

MEDO DE FALAR

Mas nem todos partilham da posição de Al Bnnoud. Os que se posicionam abertamente estão divididos.

Grande parte prefere o silêncio. Destes, os que chegaram há menos tempo se abstêm por medo de represália aos familiares na Síria. Receiam dar qualquer informação que os identifique e evitam falar de política ao telefone.

A atitude é compreensível, considerando um dos principais motivos da imigração do início deste século.

"Muitos saíram do país devido à falta de liberdade de expressão e a perseguições, pois não podem fazer oposição aberta. Isso é bastante claro", afirma a professora Soraya Smaili, diretora do Icarabe (Instituto da Cultura Árabe) que estuda a imigração de sírios e libaneses no país.

Já muitos dos que nasceram aqui preferem não defender uma posição pelo simples distanciamento da situação no país de seus pais e avós.

O presidente da Fearab (Federação de Entidades Árabe-Brasileiras de São Paulo), Eduardo Felício Elias, 68, está entre os que discutem publicamente o conflito.

Para o neto de um sírio cristão, o que se vê hoje no país não é um problema interno, mas de "uma liga internacional contra a Síria", que infiltrou "armas e homens no país desde o início do conflito".

"Querem fazer uma limpeza religiosa, instalar uma república islâmica. E a vocação da Síria não é de religião única", diz, sustentando o temor de guerra sectária alimentado por partidários de Assad.

Elias, no entanto, não acredita que o regime vá cair. "Bashar tem a confiança do povo", opina.

O sírio Ehab Al Dairi, 44, muçulmano sunita, descarta qualquer motivação sectária no levante. Ou que o movimento tenha vindo de fora para dentro. "O povo se cansou dessa ditadura, que já foi ainda pior do que o que se vê hoje, quando o mundo não prestava tanta atenção", diz.

Segundo ele, só depois de meses de "protestos pacíficos combatidos com ataques, mortes e estupros o povo começou a se defender".

Como Al Bnnoud, Al Dairi participou das últimas manifestações contra o regime na avenida Paulista -onde fica o consulado sírio em São Paulo-, que reuniram descendentes também de libaneses e sindicatos brasileiros. Os protestos são questionados por quem apoia Assad, sob o argumento de que seriam influenciados por apoiadores do ex-premiê libanês Saad Hariri.

FUTURO IMPREVISÍVEL

Para o jornalista Tammam Daaboul, 31, também descendente de sírios, no atual estágio do conflito, não haverá recuo dos movimentos populares nem do governo. "Ou veremos uma mudança de comportamento de Rússia e China, com mais pressão sobre o governo, ou viveremos um conflito civil crônico, de consequências imprevisíveis."

Al Dairi já se diz disposto a assumir sua parte na luta contra Assad. "Aquela é a terra dos nossos pais e avós, que pagaram com sangue para tirar franceses e otomanos. Não vou deixar minha terra para ele. Se for pra voltar para morrer, vou voltar."

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