Índice geral Mundo
Mundo
Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

Milícia síria mata à base de anfetaminas

Membros da 'shabiha', temido grupo paramilitar a serviço de Bashar Assad, relatam à Folha como gangue opera

Prisioneiro de rebeldes em Aleppo, um deles diz que matar opositor rende R$ 30, desde que corpo seja apresentado

Marcelo Ninio/Folhapress
Membro da shabiha detido pelas forças rebeldes na Síria
Membro da shabiha detido pelas forças rebeldes na Síria

MARCELO NINIO
ENVIADO ESPECIAL AO NORTE DA SÍRIA

O olhar é de bicho acuado. Os pés estão descalços e as mãos, embora livres, não saem de trás das costas, sugerindo que até há pouco estavam algemadas.

Ali Hussein Mawas, 24, já foi taxista e carrasco do regime sírio. Agora é um dos 121 prisioneiros mantidos pelos rebeldes no norte de Aleppo.

Por trás do pesado portão de ferro, uma escola para meninas foi transformada na maior prisão do território conquistado pelo ELS (Exército Livre da Síria), principal grupo armado de oposição ao ditador Bashar Assad.

Entre os prisioneiros há policiais, soldados e criminosos comuns. Ali Hussein pertence a uma quarta categoria, a mais odiada pelos rebeldes: a dos "shabiha" (fantasma, em árabe), gangue de mercenários encarregada do serviço mais sujo do regime.

No território dominado pelo ELS, os papéis se inverteram. Visivelmente intimidado, Ali encolhe-se no escritório ocupado pelo chefe da prisão, um caminhoneiro corpulento que atende pelo apelido de Jumbo.

Ali conta que se alistou nas shabiha há quatro anos em troca de dinheiro e proteção. Até o início do levante contra o regime Assad, em março de 2011, seu papel era basicamente o de informante.

Quando os protestos começaram em Aleppo, um mês depois, passou a infiltrar-se entre os manifestantes reprimindo-os com pedaços de pau e facas. Na prisão dos rebeldes, confessou pelo menos um assassinato.

"Foi há um ano, durante o ramadã [mês de jejum islâmico]", conta, sem tirar os olhos de Jumbo. "Fui até um dos manifestantes e o furei várias vezes com a minha faca. Lembro que ele era jovem e um pouco gordo."

Depois do assassinato, Ali diz que jogou o corpo no necrotério de um hospital e foi tomar café com amigos. Sem entregar o cadáver, explica, não receberia o pagamento pelo serviço. O preço do crime: mil libras sírias (R$ 30).

A motivação era financeira, mas o discurso também indica uma confusa mistura de medo e lealdade ao regime. "Eu fazia por amor a Assad", diz Ali. "Mas já tinham me prendido duas vezes e ameaçaram me matar se não trabalhasse para o governo."

Um dos rebeldes, carcereiro de primeira viagem, traz o que foi achado nos bolsos de Ali quando ele foi preso.

Cinco facas de tipos variados, algumas enferrujadas, a menor do tamanho de um polegar. O shabiha reconhece as lâminas e diz que as afiava toda noite. Ali dava nomes para elas. A menor, em formato de elipse, ele chamava de "peixinho".

Em seus bolsos também havia um punhado de comprimidos de Benzex, uma anfetamina. É comum os shabiha saírem para as ações ordenadas pelo regime acelerados por esta e outras drogas, afirma Ali. Os comprimidos de Benzex, afirma, lhes eram dados pelo governo.

Outra marca dos membros da gangue são as tatuagens espalhadas pelo corpo. Alguns têm declarações de lealdade a Assad. Ali tem inscrições feitas de forma tosca em árabe nos braços. "A maior tragédia é perder a dignidade", diz uma delas.

As tatuagens feitas como rito de entrada nas gangues facilitam a identificação dos agentes do regime. Em uma fila de prisioneiros numa escola que serve de base rebelde em Aleppo, um homem sem camisa era empurrado a tapas. No peito desnudo, a tatuagem: "Somos todos Assad".

MERCEDES

Os relatos do taxista e de outros prisioneiros ouvidos pela Folha abrem uma fresta para o misterioso e sinistro mundo das shabiha, gangues de contrabandistas surgidas nos anos 80 com a anuência do regime em Latakia.

A origem do termo seria um modelo de Mercedes conhecido como "fantasma", muito usado pelas gangues devido ao tamanho espaçoso do bagageiro, que facilitava o transporte de contrabando.

Nos anos 80 e 90, os shabiha se beneficiaram do controle sírio do Líbano para traficar todo tipo de mercadoria na fronteira, de produtos de luxo a drogas e armas.

As gangues operavam com a conivência do regime e muitos de seus chefes eram da minoria alauita, a doutrina islâmica à qual pertence a família do ditador Bashar Assad. Mas também há muitos sunitas a serviço do grupo, como o taxista Ali.

Outro é Ismail Abdelrani, 44. Segundo os rebeldes, ele era chefão da shabiha na cidade de Aleppo. Ele nega. Garante que era peixe pequeno.

Sem deixar o emprego de vendedor numa loja de móveis, Ismail conta que há oito anos bateu na porta de um dos serviços de segurança e se ofereceu para trabalhar para o regime como delator.

Não ganhava dinheiro do regime, diz. Mas com os contatos no governo recebia favores nos corredores do poder, vendendo documentos como carteiras de motorista e furando as filas da burocracia. Seu tráfico era de influência.

Quando os protestos anti-Assad começaram, se disfarçou de servente em uma mesquita de Haldie, oeste de Aleppo, para espionar os manifestantes. "Em um dia, delatei mais de 25", lembra.

SENTENÇA

Escolhidos pelos rebeldes para a entrevista, Ali e Ismail não apresentavam marcas de violência. Mas a Folha testemunhou em Aleppo prisioneiros com sinais claros de espancamento. Alguns foram mortos sumariamente, confirmam os rebeldes.

A sentença de morte mais notória foi a de Zino Barri, chefe de um poderoso clã de Aleppo ligado ao regime.

Barri e outros três membros de sua milícia foram fuzilados na escola que serve de QG dos rebeldes. Os desenhos de Mickey e Bob Esponja na parede usada na execução estão pontilhados de buracos de bala.

A sentença foi decidida por uma corte formada por líderes islâmicos e do conselho revolucionário local e aplicada diante de centenas de pessoas e de câmeras de celulares.

"Eles chamaram o bairro inteiro para assistir", contou à Folha um estudante que presenciou a cena. "Houve gente que levou doces aos rebeldes para comemorar."

Os vídeos do fuzilamento logo caíram na rede, provocando protestos de grupos de direitos humanos sírios e estrangeiros. A Folha encontrou um time do grupo Human Rights Watch que visitava a escola convertida em prisão.

Coberta por uma abaia (veste islâmica), Anna Neistat, diretora de programas de emergência da organização, disse que conversara com alguns dos presos, mas não havia obtido permissão para ficar a sós com eles.

Ela reconheceu que os rebeldes têm sido receptivos aos pedidos do grupo e que o acesso é muito maior do que o concedido pelo regime, que não permite inspeções da HRW. Mas disse que os abusos se repetem, muitos por ignorância.

"Eles negam que haja tortura de presos, mas dizem que batem neles nas plantas dos pés", disse Neistat, descrevendo uma das formas clássicas de tortura.

"Definitivamente estão se esforçando para fazer a coisa certa", diz ela. "A questão é o que acham que é certo."

Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.