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Análise

Veredicto aponta para cooperação entre psicanálise e Justiça

LUCIANA SADDI
ESPECIAL PARA A FOLHA

No século 18 os filósofos iluministas pretenderam substituir a ideia de providência divina pela de certeza científica.

Assim, todo um universo de conhecimento que se acumulava sob a denominação de filosofia iniciou uma preparação árdua para dela se separar.

Cada ramo do conhecimento adquiriu método, objeto e processo próprio para atender às condições essenciais do tão desejado status de ciência. A psiquiatria engatinhava nesse processo -é difícil domesticar a loucura.

No final do século 19, fez um grande esforço para compreender, medir, dividir em tipos e explicar, cientificamente, a desrazão.

Surgiu uma classificação das doenças mentais, bastante útil até hoje.

O projeto racional e científico da modernidade estava em vias de se tornar um projeto completo. Faltava um último toque - faltava a sociedade acreditar nesse projeto e validar seus resultados.

Só assim o circuito realizador da realidade poderia se fechar. Para que isso ocorresse, era preciso que a Justiça reconhecesse, socialmente, o poder da psiquiatria.

Um jovem parricida e fratricida francês do século 19 (Pierre Rivière) sofreu o primeiro julgamento da história capaz de tensionar o discurso alienista e o jurista.

Os magistrados entendiam que o rapaz estava lúcido no momento do crime, pois demonstrava frieza ao descrever e justificar a barbárie cometida.

Por sua vez, os inúmeros laudos médicos, no decorrer do processo, afirmavam a inimputabilidade do criminoso, ao justificarem as atitudes de Rivière como resultado de sua alienação mental.

Ele, que fora inicialmente condenado à morte, teve a pena convertida para prisão perpétua. A teoria em voga, que acreditava na hereditariedade como o grande produtor da loucura, venceu.

E a psiquiatria tornou-se uma das mais reconhecidas e aceitas ciências de nossos dias.

O julgamento do extremista norueguês Anders Breivik, 33, que matou 77 pessoas em atentado a bomba e a tiros em Oslo em 2011, afastou a hipótese de problemas mentais ao condená-lo à pena máxima de prisão no país.

Talvez, no início do século 21, a tensão entre Justiça e psiquiatria seja substituída pela cooperação entre Justiça e psicanálise. Afinal, a insanidade do nosso mundo é resultado da maneira como o construímos -responsabilidade nossa- mas preferimos acreditar que é produto da irracionalidade das relações humanas e da irrealidade do mundo.

O cotidiano esconde o que a loucura faz questão de mostrar ao desenterrar as raízes de nossa pacata existência.

A Justiça prefere prender os desenterrados. Faz muito bem.

LUCIANA SADDI é psicanalista e autora, entre outros, de "O Amor Leva a um Liquidificador" (ed. Casa do Psicólogo). Mantém na Folha o blog "Fale Comigo"

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