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Gringolândia

CHICO MATTOSO

Duelo sem teleprompter

Os EUA tratam debate com tanta reverência que me deu vontade de botar fraque antes de ligar a TV

Sempre invejei a capacidade norte-americana de inventar tradições. Os caras estão por aí há tanto tempo quanto a gente, mas tratam as próprias instituições como se elas tivessem sido gravadas na pedra por um Moisés extraviado.

Tudo, nos EUA, acaba virando mito -do Velho Oeste aos Pais Fundadores, passando pelo sorriso da Oprah e a receita do peru de Ação de Graças.

Um dos exemplos dessa capacidade de mitificação é o debate presidencial. Faz pouco mais de 50 anos que o primeiro deles aconteceu, mas os gringos tratam a coisa com tanta reverência que, na última quarta, me deu vontade de botar fraque antes de ligar a televisão.

Ainda bem que eu me segurei. O que se viu, afinal, não passou da tradicional batalha de versões, números e estatísticas, com direito a esgares de superioridade e ironias ocasionais. A coisa foi tão excitante que, em mais de um momento, tive a sensação de que o mediador havia caído no sono.

Mas nem tudo foi ruim. Um debate, por mais chato que seja, tem uma dimensão humana que o redime.

Num mundo inundado por estrategistas políticos e teleprompters de última geração, o simples fato de colocar os candidatos frente a frente parece oferecer uma chance de contato com a realidade.

Quarta-feira não foi diferente: lá estavam dois sujeitos fazendo um esforço monumental para manter-se à altura da ficção criada por suas campanhas -e, claro, falhando espetacularmente na missão.

O embate entre fato e fantasia foi implacável. Quem poderia imaginar que Obama, o orador brilhante e de retórica afiada, passaria 90 minutos gaguejando feito um moleque de pré-escola? Sua performance foi tão lamentável que um conhecido chegou ao ponto de defender que era uma estratégia de campanha -uma tentativa de chacoalhar a disputa, mobilizando as bases democratas e evitando o clima de já ganhou.

O caso de Romney é ainda mais curioso. Seu bom desempenho foi unanimidade da direita à esquerda.

Não importa que quase tudo o que ele falou contrariasse o seu plano de governo - ele "portou-se como um líder", disseram os analistas, o que me faz pensar que talvez o segredo da campanha republicana seja uma revolucionária fé nos poderes da amnésia.

Quem precisa de coerência, afinal, num mundo abarrotado de pessoas com deficit de atenção?

Teremos mais dois debates entre eles daqui até as eleições. Cada encontro será precedido por dias de ansiedade. Especialistas em linguagem corporal falarão sobre a importância de evitar a sudorese; historiadores lembrarão, pela milionésima vez, do embate seminal entre Nixon e Kennedy; analistas dirão que o próximo confronto poderá "mudar tudo", mesmo que ninguém saiba de fato o que isso quer dizer.

Então dois homens subirão à tribuna e, tremendo nas bases, esperarão o adversário dizer alguma besteira.

O mito seguirá em construção -mesmo que o pessoal concorde que, no fim das contas, aquele blá-blá-blá não serviu para muita coisa.

CHICO MATTOSO, escritor, vive em Chicago. É autor de "Nunca Vai Embora" e "Longe de Ramiro", entre outros livros.

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